Outras ações são permitidas no assentamento de indígenas nas florestas nacionais de São Francisco de Paula e de Canela, no RS
Acordos dão margem à caça e ao uso de espécies ameaçadas nas Florestas Nacionais de Canela e de São Francisco de Paula, no Rio Grande do Sul. Fontes avaliam que isso é ilegal e escanteia de vez a conservação da biodiversidade. Azeitados pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), dois termos que foram assinados na última quinta (19) abrem alas ao assentamento de 110 indígenas Xokleng Konglui e Kaingang Konhum Mág nas reservas, que somam quase 2,2 mil ha de mata atlântica.
Ficam permitidos estudos para a caça de animais nativos e o abate de exóticos javalis. Foi vetado o corte de apenas imbuia (Ocotea porosa), canela-preta (Ocotea catharinensis), araucária (Araucaria angustifolia) e xaxim (Dicksonia sellowiana), mas partes desses dois últimos podem ser usadas para artesanato e outros costumes das etnias. Para o doutor em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e parte do conselho da Flona de São Francisco de Paula até o início do ano, Leandro Duarte, essas medidas são um duro golpe na biodiversidade.
“Isso e muito mais está sendo liberado sem estudos de impacto nas florestas nacionais. Não sabemos o que acontecerá com esses experimentos”, diz. “As Flonas foram convertidas em terras indígenas e não servirão mais a seu objetivo principal, a conservação”, avalia. A implantação do acordado deve ser acompanhada pelo TRF4, órgãos públicos, pesquisadores e indígenas.
Manual rasgado
Os acordos permitem às etnias cultivar plantas de “interesse tradicional”, pescar, criar peixes e manter cachorros domésticos, operar turismo e usar fogo. As famílias receberão água encanada, eletricidade, esgoto, coleta de lixo, internet e abertura de estradas. Isso exigirá mudanças nos planos de manejo das reservas, “manuais de uso” até então alinhados à lei federal. Essa não permite caça em Flonas, só um “uso sustentável” de florestas, pesquisas e a permanência de populações tradicionais que lá viviam quando elas foram criadas.
“Nas áreas que serão ocupadas só são permitidas hoje pesquisas, por seu grande valor de conservação”, alerta Duarte (UFRGS). “Balanços de flora e fauna não pesaram nos acordos que assinados”, ressalta o cientista. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) não apresentou a ((o))eco um atestado de que os indígenas viviam na área das Flonas quando foram criadas, nas décadas de 1940 e de 1960. Seus planos de manejo não mencionam a presença histórica ou conflitos com indígenas.
Diante disso, os professores no Departamento de Zoologia da Universidade de Brasília, Ludmilla Aguiar e Ricardo Machado avaliam que, se há um laudo antropológico reconhecendo direitos indígenas sobre terras e recursos das Flonas, recortá-las pode evitar “conflitos administrativos”. “A melhor saída seria desafetar a área das Flonas sobrepostas às terras indígenas e que a FUNAI seja instruída a promover e proteger os direitos desses povos”, ressaltam os pós-doutores pela Universidade de Bristol (Inglaterra). Confira aqui sua análise sobre os acordos.
Aguiar e Machado descrevem que uma unidade de conservação deve assegurar bens coletivos como a biodiversidade e ambientes conservados, enquanto que os recursos de terras indígenas servem sobretudo para perpetuar esses povos, suas culturas e direitos. “A solução determinada pelo TRF4 pode trazer uma momentânea sensação apaziguadora, mas não resolve a parte legal do conflito”, ressaltam.
Bioma despedaçado
As minutas dos acordos (confira aqui) citam que, em até 2 anos, será definida a área reivindicada pelas etnias nas Flonas. No mesmo prazo, devem ser alojados em novas casas, pois hoje ocupam imóveis do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
Duarte (UFRGS) não questiona a demarcação de terras indígenas, mas diz que o assentamento nas Flonas joga contra a biodiversidade. “As terras indígenas seriam aliadas da conservação se criadas em áreas preservadas no entorno das reservas, rodeadas de pinus e grãos”, diz. As Flonas de Canela e de São Francisco são duas das 10 Flonas na Região Sul. Todas guardam resquícios da mata atlântica. Dela restam menos de 13% da vegetação que um dia cobriu 1,1 milhão de km2 no Brasil, um território pouco menor que o do Pará.
Mesmo despedaçado, o bioma mantém 2,2 mil espécies de mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes, além de 15,7 mil tipos diferentes de plantas, ou 5% da flora mundial. Metade dessa biodiversidade toda é endêmica, só existe na mata atlântica.
O ICMBio reconhece que nas Flonas vivem espécies raras ou ameaçadas de extinção, como papagaio-charão (Amazona pretrei), lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), morcego-vermelho (Myotis ruber), águia-cinzenta (Harpyhaliaetus coronatus) e onça-parda (Puma concolor).
Ocupação política
Em reportagem de agosto, ((o))eco mostrou que assentar povos tradicionais e indígenas em parques e outras unidades de conservação é uma política acelerada no governo Bolsonaro e abraçada pela atual gestão do ICMBio, responsável pelas unidades de conservação federais. O acordo das Flonas segue a toada. “É um processo que se intensificará com aceitação judicial”, avalia Duarte (UFRGS). Além de ICMBio e Funai, os acordos foram aceitos por Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público Federal (MPF), procuradorias da União e do RS.
Pesando a multiplicação nacional desses arranjos, Ludmilla Aguiar e Ricardo Machado (UnB) ressaltam que a biodiversidade “não pode perder sempre” e esperam que o poder público respeite a Constituição e as leis para conservação da natureza. “ICMBio, a sociedade em geral, incluindo o judiciário, devem compreender que nosso patrimônio natural não deve ficar em segundo plano e à mercê de interpretações diversas e tomadas sem a observação dos dispositivos legais“, pedem.
Leandro Duarte (UFRGS) agrega que os assentamentos suspenderam pesquisas, o monitoramento da biodiversidade e investimentos ligados à concessão de serviços turísticos nas Flonas. “Isso também foi questionado, mas não há mais espaço para diálogo com o ICMBio“, diz.
Retomada histórica
((o))eco não obtive contato com fontes indígenas até a publicação da reportagem. Em notícia do TRF4, a cacica Xokleng Kulung Vei-Tchá Teié avalia que o acordo é uma conquista da comunidade. “Viemos de volta para nossa casa, onde nossos antepassados foram mortos e expulsos há décadas”, conta. Já o cacique Kaingang Maurício Salvador reforça que “foi uma luta muito intensa”, que “tudo que está neste documento está sendo aprovado pela comunidade” e que “vários acordos vão ainda ser feitos futuramente, a gente está aberto ao diálogo, sempre”.
Antepassados dos Xokleng e Kaingang viviam ao longo das regiões Sul e Sudeste. Foram quase dizimados pela brutal colonização do território brasileiro e seguem lutando por respeito a seus direitos, história e demarcação de terras pelo poder público. As mesmas etnias ocuparam a Flona de 3 Barras, em Santa Catarina, em maio deste ano. Ela tem 4,385 mil ha. Os indígenas reivindicam terras nas Flonas de Canela e São Francisco de Paula desde meados dos anos 2000. Invasões nas mesmas eram questionadas pelo Supremo Tribunal Federal. Os indígenas acampavam em rodovias até a pandemia de Covid-19, quando puderam adentrar as reservas.
Questionados sobre detalhes da implantação e da fiscalização dos acordos nas Flonas, ICMBio e TRF4 nada explicaram até a publicação da reportagem. O Tribunal comentou por e-mail que só abordaria os termos depois de assinados. “Os detalhes do conteúdo do acordo consolidado (…) somente serão divulgados (…) após a assinatura pela Presidência da Funai, do ICMBio e das comunidades indígenas e juntado aos autos do processo judicial”, diz Adelar Gallina, diretor no Sistema de Conciliação do TRF4.
Fonte: Aldem Bourscheit/O Eco
Foto de Topo – Cenário na Flona de São Francisco de Paula – ICMBio