Cana produzida no Litoral do Paraná tem características únicas, como alto teor de açúcar, que favorece o processo de fermentação e destilação de cachaça
Dos primeiros alambiques às margens do Rio Nhundiaquara no século 18 à produção atual das cachaças nobres com a cana-de-açúcar da mais alta qualidade plantada ao pé da Serra do Mar em Morretes, no Litoral do Paraná, preserva uma ligação íntima com a produção da bebida que se confunde com a sua própria história. Uma tradição tão forte que virou até verbete de dicionário: “morretiana”, nos dicionários Houaiss e Aurélio, é sinônimo de cachaça.
Esta relação foi reforçada no início de dezembro, quando o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) reconheceu a aguardente de cana e a cachaça de Morretes como o 13º produto com indicação geográfica (IG) do Paraná. A certificação contempla três cachaçarias da região que se comprometem a produzir a cachaça em alambiques, abrindo mão do processo industrial em grande escala, e seguindo parâmetros rígidos de rastreabilidade do produto. O modelo preserva as características que fizeram da bebida produzida em Morretes uma referência nacional.
A concessão da Indicação Geográfica foi destinada inicialmente a três empresas que fazem parte da Associação dos Produtores de Cachaça de Morretes (Apocam): Casa Poletto – Ouro de Morretes, Porto Morretes e Magia da Serra. O processo foi registrado no INPI em 27 de março de 2020 e contou com a colaboração do Sebrae-PR para a criação da associação, coleta de documentos, divulgação em veículos de imprensa, obtenção de relatos dos moradores sobre a importância do produto, além de um levantamento abrangendo aspectos econômicos, culturais e históricos.
Existem dois tipos de cachaça. A cachaça industrial e a cachaça de alambique, que é a produzida em Morretes. Além deste processo mais cuidadoso, também apresentam terroir único do litoral, praticamente no nível do mar, na encosta da serra, com um solo especial, que proporciona uma cana especial. Estas condições, inclusive, que deram início à tradição caiçara na produção de aguardentes de cana e cachaças. A história começa ainda no Brasil Império, quando Dom Pedro II determinou a abertura de engenhos centrais em algumas cidades do País. No Paraná, Morretes foi a escolhida pelo potencial na produção de cana-de-açúcar local.
Trata-se de uma variedade de cana que tem produção menor por hectare, que também dá menos caldo, mas que tem um teor de açúcar muito alto, o que é ideal para a produção de uma boa cachaça. Dos engenhos surgiram os primeiros alambiques, que se multiplicaram com o tempo e com o sucesso da bebida. No auge da produção local, nos anos 1950, Morretes chegou a ter mais de 60 alambiques. Por conta de políticas econômicas nacionais, a produção brasileira das décadas seguintes acabou se concentrando em Minas Gerais e São Paulo, mas a tradição paranaense vem sendo resgatada nos últimos anos, com uma produção menor, mas que mira um público mais exigente. Assim como aconteceu com a cerveja e com o vinho, que criou-se uma cultura de consumo de bebidas de maior qualidade, trabalha-se agora com um público que aprecia uma cachaça premium.
Para fazer uma bebida de qualidade, a cachaça segue um processo de produção cuidadoso em todas as etapas. As bebidas que têm o selo da indicação geográfica usam somente o produto plantado em Morretes e região, que é de uma variação batizada como “havaianinha” que resulta em uma bebida ligeiramente mais suave do que as cachaças de outras regiões. A cana é cortada e colhida manualmente. Depois disso, ela é levada até uma área onde é moída. O bagaço é separado para ser queimado e o caldo é extraído, filtrado e reservado para passar por um processo de diluição para que todo o líquido seja homogeneizado a um mesmo percentual de açúcar, a 15%.
Em geral, dependendo do clima e da maturação da cana, ela pode variar o brix, que é o índice de açúcar do caldo, entre 18% e 20%. Por isso é necessário fazer um processo inicial de diluição com água. Na sequência, o caldo de cana passa pela fermentação. São pelo menos 24 horas que o líquido passa por grandes recipientes onde uma massa de levedura transforma o açúcar em álcool. Este é um dos processos mais delicados da produção de cachaça, porque é preciso controlar rigidamente a vazão do líquido e a temperatura do caldo para uma fermentação perfeita. A levedura responsável pela fermentação também demanda cuidados especiais, sendo “alimentada” por cerca de uma semana com quirera de arroz e limão no início da colheita da cana para ficar pronta para o processo de produção da bebida ao longo de toda a safra.
Depois da fermentação, a bebida passa pela destilação no alambique de cobre, onde parte do líquido se evapora a 90°C, passa por um duto e depois é condensado novamente a cerca de 20°C. Neste processo, cerca de 10% de todo o líquido produzido se transforma, efetivamente, em cachaça. É uma seleção feita por análise sensorial. Um profissional experiente que analisa, a cada lote, características como o aroma e a viscosidade do líquido. Em seguida, no processo final de produção, a bebida é separada para descansar em tonéis de inox ou, para bebidas mais refinadas, em barris de carvalho, onde ficam até 15 anos em processo de envelhecimento.
O modo de produção das cachaças de Morretes que têm direito a usar o selo de Indicação Geográfica é totalmente orgânico, sem uso de defensivos agrícolas para a cultura da cana. O processo de fabricação da bebida também é feito de maneira sustentável. De acordo com a gerente de produção da Agroecológica Marumbi, Gisele Abreu, a empresa trabalha com o conceito de resíduo zero. O cuidado com o meio ambiente vai além de uma produção 100% orgânica, também preocupando-se com o consumo de todo o resíduo gerado.
Os resíduos do bagaço da cana, por exemplo, são secos e usados como combustível na caldeira onde é gerado o vapor para o processo de destilação. O que sobra é usado para compostagem. O vinhoto da cana, que é o resíduo final do caldo que não é transformado em bebida, também volta para a lavoura para ser usado nos processos de fertirrigação. Segundo o proprietário da cachaça Magia da Serra, produzida pelo o Alambique Dom Henrique, na Serra da Prata, José Carlos Posses, a linha de produção também é toda construída em declive, para que o caldo saia da moagem até o envase usando somente a força da gravidade passando de um processo ao outro. O sistema quase não usa energia, com o alambique construído passo a passo pensando na evolução da bebida em gravidade. Da moagem à destilação não é preciso usar motor. Além de ser sustentável, ajuda nos custos com energia.
De acordo com dados do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (Ipardes) de 2022, Morretes é responsável por 30% da produção estadual de cachaça e aguardente, e segundo o Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), o Paraná é o sexto maior produtor da bebida e o terceiro maior exportador do país. Mas maior do que o impacto econômico direto da produção da bebida, a cachaça de Morretes ajuda a reforçar a identidade histórica da cidade, especialmente para os turistas que visitam o litoral.
A cachaça é um elemento do cardápio que ajuda na imersão dos turistas que vão à cidade. Trata-se de uma cachaça de Mata Atlântica. Quem vai a Morretes quer viver uma experiência de contato com a história e natureza do local. Quando se nós serve os clientes, é explicada toda a história da bebida, a relação com o meio ambiente e eles entendem o quanto ela faz parte da atmosfera local. As bebidas com IG são utilizadas na produção de drinques, como uma bebida com maracujá e mel locais, e para flambar uma sobremesa de banana, outra fruta típica da região.
A relevância da região como produtora de aguardente, melado, rapadura e açúcar era tão significativa que em 1796, o segundo engenho de açúcar do Brasil foi instalado em Morretes. A fama e a qualidade da cachaça de Morretes eram tão reconhecidas que existem registros datados de 1842 sobre sua importação para países como Argentina, Uruguai e Chile. No entanto, nas últimas décadas do século XX, os altos impostos levaram ao fechamento dos diversos alambiques instalados por imigrantes portugueses e italianos ao longo da Estrada do Anhaia. Nessa estrada, é possível encontrar uma roda d’água desativada com 12 metros de diâmetro, além de ruínas de engenhos e tanques de madeira com capacidade para mais de 15 mil litros, datando do século XIX.
Agora, com a adição da Cachaça de Morretes, o estado do Paraná conta com um total de 13 produtos registrados com Indicação Geográfica (IG). Além da cachaça, os demais produtos são: Barreado do litoral do Paraná, Bala de Banana de Antonina, Melado de Capanema, Goiaba de Carlópolis, Queijo de Witmarsum, Uvas de Marialva, Café do Norte Pioneiro, Mel do Oeste, Mel de Ortigueira, Erva-mate São Matheus do Sul, Morango do Norte Pioneiro e Vinhos de Bituruna.
Outros nove produtos do Paraná estão aguardando o reconhecimento do INPI: Camomila de Mandirituba, Broas de Centeio de Curityba, Mel de Prudentópolis, Urucum de Paranacity, Queijos do Sudoeste do Paraná, Cracóvia de Prudentópolis, Carne de Onça de Curitiba, Café de Mandaguari e Ponkan de Cerro Azul.