Garimpo desacelera, mas cresce 7% na TI Yanomami em 2023, inviabilizando sistema de saúde e intimidando servidores do governo
A um ano atrás, logo no início do novo governo federal, o Brasil e o mundo foram surpreendidos com imagens de índios – idosos e crianças – morrendo de desnutrição e malária em território yanomami, a maior do país, com quase 30 mil habitantes indígenas, em Roraima. Uma crise humanitária sem precedentes que compromete o meio ambiente, com clareiras abertas na mata pela atividade ilegal de mineração e diversos outros crimes contra a comunidade indígena. Atualmente, a situação em terras yanomamis ainda preocupa as lideranças indígenas e gera insegurança aos povos originários. O garimpo ilegal disseminou a fome e a doença, colapsando o atendimento à comunidade.
Semana passada, lideranças da Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima (RR), denunciaram um conjunto de situações que ainda marcam a área mais de um ano após o decreto presidencial que formalizou o estado de calamidade pública no local. De acordo com a Hutukara Associação Yanomami, o garimpo reduziu o ritmo de crescimento da atividade no território, mas ainda assim conseguiu crescer 7% no período. Além disso, a entidade afirma que a ação dos invasores segue inviabilizando uma das principais demandas da população local: o atendimento de saúde.
O relato da organização é subscrito também pela Associação Wanassedume Ye’kwana (Seduume), pela Urihi Associação Yanomami e conta com apoio de técnicos do Instituto Socioambiental (ISA) e do Greenpeace. O grupo afirma que, por conta da presença ainda constante do garimpo, o alastramento de enfermidades infectocontagiosas, a contaminação por mercúrio e a violência seguem afetando duramente a população local, que engloba 384 comunidades.
Segundo dados da Fiocruz, não é possível ter o número exato da crise sanitária dos yanomamis nos últimos anos na região, diante do desmonte de políticas públicas ambientais e indigenistas que ocorreram nos governos Temer e Bolsonaro. No ano de 2022, 343 indígenas morreram, ante as 308 mortes registradas no ano passado. Os indígenas cobram o fim do garimpo ilegal na região e avanços eficazes na saúde do seu povo.
O Supremo Tribunal Federal determinou, em novembro, que o Ministério da Saúde apresentasse, em 90 dias, um plano para reestruturar a assistência à saúde indígena no território. Recentemente, o governo federal anunciou um plano operacional na região, abrindo “guerra” contra o garimpo ilegal em terras indígenas. Ficou determinado ainda que a presença das Forças Armadas e da Polícia Federal será permanente na região. A Casa Civil anunciou investimentos de R$ 1,2 bilhão para “ações estruturantes” em 2024.
A tragédia yanomami continua
Os estragos causados pelo garimpo ilegal na área são materializados em números: foram registradas 308 mortes na TI no ano passado (2023, ano da intervenção na TI pelo novo governo), sendo 129 delas por doenças infecciosas, 63 por males de ordem parasitária e 66 ocasionados por doenças respiratórias. Em muitas regiões, a cobertura vacinal não atinge nem metade das crianças, tanto as com menos de 1 ano quanto as de 1 a 4 anos.
A desnutrição continua preocupante. Mesmo com a ampliação do atendimento a crianças de até 5 anos por parte da Vigilância Alimentar e Nutricional em relação a 2022 e 2021, o Estado brasileiro ainda não chegou a todo o segmento, pois as equipes hoje abarcam apenas 84,5% da população-alvo.
Houve ainda, nas comunidades, pelo menos sete assassinatos resultantes de conflitos diretos envolvendo arma de fogo introduzidas na TI por garimpeiros. Os garimpeiros insistem na atividade ilegal e os profissionais de saúde se sentem intimidados e não conseguem acessar comunidades mais vulneráveis.
O presidente da Hutukara, Davi Kopenawa Yanomami, chama a atenção para problemas colaterais gerados pelo garimpo ilegal na TI. Segundo ele, a exploração de minérios continua a estragar tudo, derruba floresta, aplica veneno na água e contamina os peixes, uma das principais fontes de alimentação dos indígenas.
O grupo de organizações chama atenção ainda para a devastação ambiental ocasionada pelo garimpo: os 7% de crescimento verificados na área de atuação dos invasores impactaram um total de 5.432 hectares da TI em 2023. Esse número representa uma desaceleração na taxa de crescimento da área degradada, em comparação com o avanço dos últimos anos, nos quais a taxa de incremento anual foi de 42% (2018-2019), 30% (2019-2020), 43% (2020-2021), 54% (2021-2022). Porém, este incremento revela também que a atividade ilegal continua operando com intensidade no território.
Outra preocupação do grupo é com o avanço dos garimpeiros no que se refere ao uso de tecnologias de comunicação que servem para sofisticar os métodos de exploração da terra e enganar os fiscais estatais que atuam na área. A Hutukara destaca que desde outubro de 2018 realiza por conta própria uma vigilância sobre a TI através da interpretação de imagens de satélite.
Segundo a organização, especialistas averiguam as imagens e mapeiam os tipos de área devastada, por isso a entidade consegue acompanhar os dados em detalhes de forma permanente. Ao todo, são 21 regiões (de um total de 37) com registros de desmatamento associado ao garimpo. Dessas regiões, o Sistema de Alertas da TI Yanomami 2 confirmou a presença garimpeira em pelo menos 13.
As imagens circularam o mundo e causam comoção internacional, forçando às autoridades se mobilizarem. Segundo o MPF, a retirada dos garimpeiros foi determinada pela Justiça no âmbito de ação civil pública ajuizada contra os órgãos federais, em 2020. O objetivo era garantir a implantação de plano emergencial de ações de monitoramento territorial efetivo na terra indígena, com o combate a ilícitos ambientais e a retirada de infratores. No entanto, os esforços empreendidos pelos órgãos federais até o momento se mostraram ineficazes, alertou o órgão.
No dia 21 de dezembro de 2023, a Justiça Federal de Roraima determinou a criação de um novo cronograma de ações contra o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. Na decisão, são citados a União, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
A decisão atendeu a um pedido do MPF. Segundo o órgão, apesar dos “resultados promissores” das operações governamentais realizadas no território, no início de 2023, elas não conseguiram evitar a reocupação de áreas pelo garimpo, o que afeta a segurança, a saúde e a vida dos povos indígenas. Tais ações, segundo o órgão, geraram resultados positivos até o início do segundo semestre, quando houve um retrocesso mediante o retorno de não indígenas para atividades ilícitas de exploração mineral, sobretudo em áreas já desmatadas. Os relatos de aliciamento, prostituição, incentivo ao consumo de drogas e de bebidas alcoólicas e até estupro de indígenas por parte dos garimpeiros são constantes.
Comitiva do governo
Em balanço divulgado no final de 2023, o governo informou que o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública, instalado para ações emergenciais de enfrentamento da crise, realizou mais de 13 mil atendimentos aos indígenas encontrados em “grave situação de abandono”.
Como parte das ações, também foram enviados 4,3 milhões de unidades de medicamentos e insumos, e aplicadas 52.659 doses de vacinas. Ao todo, 1.850 profissionais de saúde mobilizados, atuando em escala, aponta o levantamento.
Um ano após o governo federal decretar emergência em saúde pública na Terra Indígena Yanomami e deflagrar operações para expulsar garimpeiros ilegais e prestar assistência de saúde à comunidade, uma comitiva de ministros desembarcou dia 10 de janeiro em Roraima para monitorar e avaliar a situação na área.
O grupo era formado pelos ministros dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida; do Meio Ambiente e Mudança Climática, Marina Silva; e dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. Eles desembarcaram em Boa Vista e depois seguiram até região de Auaris, que fica dentro do território demarcado.
Na localidade, próxima da fronteira do Brasil com a Venezuela, os ministros verificaram as condições no posto de saúde Ye’kwana, onde estão sendo construídas novas instalações para receber os pacientes, laboratórios e alojamentos para profissionais de saúde. Em seguida, visitaram a aldeia do mesmo povo, onde, no ano passado, ação do governo federal forneceu ferramentas novas para a criação de roçados que facilitam a autonomia alimentar dos yanomami.
A visita foi acompanhada pela presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joênia Wapichana, pelo secretário especial de saúde indígena do Ministério da Saúde, Weibe Tapeba, além de lideranças indígenas locais.
No começo deste ano, o governo anunciou uma série de medidas para reforçar as ações na TI Yanomami. Entre elas, a presença permanente de militares no território e a criação de um espaço de governança integrado dos órgãos federais, em Roraima, batizado de “Casa de Governo”.
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, reconheceu nesta semana que o governo subestimou a dimensão da crise na Terra Indígena Yanomami e não resolveu o problema como estimado em 2023. Ela também disse que a questão não deve ser solucionada em 2024. “Não é só falar que a crise não se resolveu em 2023. De fato, não se resolveu. E provavelmente não se resolverá em 2024, considerando a situação complexa que temos. Mas pegamos o território nessa situação. Achamos que era só uma crise sanitária, mas tinha toda essa questão do garimpo impregnado”, afirmou.
As Forças Armadas
As Forças Armadas, responsáveis pela logística e atuações de suporte em alguns setores na Terra Indígena Yanomami, pediram R$ 993 mil por dia para as operações que reprimem o garimpo ilegal. Apesar do alto valor, os militares não entregaram a metade das cestas básicas necessárias aos indígenas, segundo o documento do Ministério da Defesa.
A pasta calculou o valor e enviou a demanda para a Casa Civil. O governo federal anunciou mais R$ 1,2 bilhão para a missão. Houve um pedido de R$ 275 milhões em créditos extraordinários para as operações militares em agosto de 2023. O novo pedido de verba se deu em setembro.
No documento do mesmo mês do ano passado, há a informação de que a verba para a assistência humanitária e a expulsão de garimpeiros acabou, o que exigiria um novo pedido. O comunicado da pasta disse que houve “extinção dos recursos orçamentários”, o que dificultaria a atuação das autoridades para o envio dos recursos aos indígenas. Segundo o documento, esse fato “implica a necessidade de aporte de valores na dimensão mencionada”. De acordo com a Defesa, o valor teria como finalidade a distribuição de “766 toneladas de alimentos; 36,6 mil cestas básicas; 3 mil atendimentos médicos; a detenção de 165 suspeitos; e cerca de 7,4 mil horas de voo”.
Mesmo com a visita da comitiva governamental em 10 de janeiro, atuantes na operação não receberam suporte do Ministério da Defesa, pasta com a qual há um acordo de cooperação para atuação no território. A justificativa foi a de que as aeronaves disponíveis não tinham autonomia de voo para chegar a Auaris.
Recomendações
Com base no panorama traçado, a Hutukara faz coro para que as autoridades mantenham o que chama de “perspectiva holística para a superação da crise”, com ações multilaterais de atenção à TI que englobem serviços de saúde, infraestrutura, recursos humanos e planejamento. A organização e seus parceiros traçam um conjunto de recomendações dirigidas ao governo.
Entre elas estão a “retomada urgente” dos trabalhos de desintrusão de garimpeiros, o fortalecimento de ações integradas, a elaboração de um “Plano de Proteção Territorial” que inclua bloqueio fluvial e controle do espaço aéreo, soluções de patrulhamento da área, um plano para capacitar e engajar indígenas nas ações de vigilância do território, força-tarefa para o controle da malária, ampliação de parceiras técnicas com organizações de saúde, apoio às comunidades que desejem mudar para locais mais distantes das consequências do garimpo, entre outros aspectos.
“Nossas autoridades do Brasil precisam olhar mais o meu povo Yanomami porque o meu povo é reconhecido no Brasil e fora. Precisamos, com o apoio das autoridades – deputados, senadores, ministros que cuidam do meio ambiente, da defesa –, pressionar o chefe dos garimpeiros, que também nunca foi preso. Tem que botar na cadeia quem está errado, que está fazendo muito mal para o povo indígena brasileiro”, apela Davi Kopenawa, xamã e líder político do povo Yanomami, um dos fundadores e presidente da Hutukara.