A patente do produto já foi obtida e mortes de vítimas de picadas do inseto conhecido por seu forte instinto de defesa poderão ser evitadas
No Brasil, são cerca de 30 mil acidentes com abelhas africanizadas por ano, que causam em torno de 150 mortes. Para os pesquisadores, esses números oficiais estão subestimados, pois muitas vezes o paciente é internado em uma Unidade de Terapia Intensiva com insuficiência renal aguda, devido à ação do veneno, e a causa do óbito, dias depois, não é registrada como acidente por abelhas. Um inédito soro antiapílico, contra picada de abelhas, poderá reduzir essas mortes, segundo estudos clínicos já realizados. Deferida em novembro de 2023 pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), a patente resulta das pesquisas conduzidas pelo Cevap – Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos da UNESP com os institutos Butantan, na capital paulista, e Vital Brazil, em Niterói, no Rio de Janeiro. Parecer do INPI atestou a originalidade, a inventividade e a aplicabilidade industrial da tecnologia.
Como os outros soros antivenenos, esse é administrado por via intravenosa, gota a gota. Foi estabelecido um protocolo baseado no número de picadas que a pessoa sofreu. Como o veneno entra no corpo de forma aguda, a administração do medicamento deve ser feita no menor tempo possível para evitar danos. Os resultados dos ensaios clínicos foram divulgados na revista Frontiers in Immunology, em 2021, e indicaram que o soro é seguro e eficaz. Após a inoculação, detectou-se melhora em todos os pacientes. Apenas dois apresentaram efeitos adversos leves, como irritação cutânea. A próxima etapa é a realização de um teste com um número maior de pacientes (em torno de 400), todos vítimas de picadas de abelhas africanizadas, para confirmar estatisticamente as primeiras observações. O projeto está pronto e aguarda financiamento do governo federal, já que não existem empresas farmacêuticas privadas produtoras de soros antivenenos no Brasil. Após essa etapa, prevista para durar cerca de dois anos, será possível solicitar à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o registro do novo soro, caso os resultados sejam positivos.
Cerca de duas décadas de estudos resultaram no soro que poderá ser o primeiro antídoto específico para veneno de abelhas do mundo. A ideia de produzir um soro para o envenenamento por abelhas surgiu no Butantan, com Daniel Pimenta e o pós-doutorando Rui Seabra, que hoje é pesquisador do Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos (CEVAP) da UNESP de Botucatu. O primeiro passo foi fazer a caracterização bioquímica do veneno para entender a sua composição. Depois, começou-se a pensar na viabilização da produção do soro.
As abelhas africanizadas são resultado do cruzamento de abelhas-europeias (Apis mellifera) com africanas da subespécie Apis mellifera scutellata, introduzidas no Brasil em 1956 por serem mais produtivas e resistentes a doenças. Em 1957, cerca de 25 abelhas-rainhas escaparam de um apiário em quarentena de um bosque de eucaliptos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro (SP), que viria a se tornar uma das unidades da Unesp nos anos 1970. As fugitivas cruzaram com subespécies europeias, o que resultou numa abelha poli-híbrida africanizada, que tem como característica um forte instinto de defesa. Começaram, então, os relatos de ataques de enxames, no Brasil e em outros países do continente americano.
Para os pesquisadores, é preciso distinguir dois tipos de acidentes apílicos. O mais comum é aquele que resulta em poucas picadas. Nesse caso, em indivíduos não alérgicos, haverá uma reação inflamatória local que se resolve sem intervenção médica. Em pessoas sensíveis ao veneno poderá haver uma reação alérgica grave, com risco de choque anafilático, necessitando de tratamento imediato com antialérgicos.
O segundo tipo é aquele que envolve ataques em massa, com grande quantidade de ferroadas, que pode ser fatal. O veneno injetado em grandes quantidades pode provocar insuficiência respiratória e renal aguda. Os danos se devem a dois componentes do veneno, o peptídeo melitina e a enzima fosfolipase A2 (PLA2), que têm ação citotóxica, lesionando as células, e hemolítica, destruindo os glóbulos vermelhos. Até o momento, o tratamento para a ação dessas substâncias, feito com anti-histamínicos e anti-inflamatórios, consiste em reduzir os sintomas, o que pode não ser suficiente para evitar a morte. O objetivo do soro, que precisa ser mantido sob refrigeração entre 2 e 8 graus Celsius, é atuar na causa do problema, neutralizando a ação do veneno.
Os pesquisadores precisaram superar alguns desafios biotecnológicos para produzir o soro. Um deles foi a necessidade de obter veneno em boa quantidade e com qualidade padronizada. Para contornar essa dificuldade, instalaram nas colmeias fios de cobre ligados a pequenas placas de vidro. Quando as abelhas encostavam nos fios, recebiam uma leve descarga elétrica, inofensiva a elas, mas que fazia com que depositassem uma gota de veneno na placa. Quando as abelhas pousam identificam o leve choque como se fosse um agressor e picam. Como o ferrão não fica preso no vidro, as abelhas continuam vivas e seguem o voo, mas deixam uma preciosa gota de veneno que é raspado no final.
Um grande desafio foi padronizar o processo de purificação e isolamento das principais frações do veneno, os compostos que causam a morte de pessoas e animais acometidos por múltiplas picadas. O segredo tecnológico envolvido na produção do soro é o fato de ser feito apenas com anticorpos para neutralizar a ação destrutiva da melitina e da fosfolipase A2. Todos os outros componentes, que podem causar dor e alergia nos pacientes, são retirados. Esse procedimento trouxe mais bem-estar e segurança aos cavalos que recebem inoculação do veneno para a produção de anticorpos, eliminando o risco de sofrerem um choque alérgico.
Para a produção do soro no Instituto Vital Brazil, os equinos recebem três ou quatro doses do pool das toxinas purificadas do veneno em pequenas concentrações, o que resulta em uma resposta imunológica. Uma amostra do sangue dos animais é retirada para separação da fração que contém os anticorpos. Isolados e concentrados, eles formam o soro antiapílico. Os pesquisadores não sabem qual será o custo final de cada dose. A fabricação de soros antivenenos é cara, pois demanda recursos para a manutenção dos animais que produzem o veneno e dos cavalos que serão imunizados, bem como para o processo biotecnológico da produção. Espera-se que haja uma negociação entre o Ministério da Saúde e os laboratórios públicos de produção de soros, e que ele possa ser distribuído gratuitamente pelo SUS.
Paralelamente ao desenvolvimento do soro, outro projeto com participação de pesquisadores da Unesp tenta classificar com rapidez a gravidade do quadro clínico das vítimas das ferroadas. A elaboração de um kit diagnóstico do agravo do acidente apílico, também inédito, é conduzida pela startup Triad for Life com apoio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP. O procedimento-padrão hoje consiste na contagem dos ferrões presentes no corpo da vítima, na observação clínica do paciente e em exames bioquímicos inespecíficos, sendo as únicas fontes de informação para avaliar o grau de envenenamento. Além de ser um processo demorado, sabe-se que a quantidade de veneno injetada pode variar conforme a abelha. Algumas ferroadas podem ser “vazias”, ou seja, sem inoculação de veneno.
A partir de uma gota de sangue do paciente, o kit quantifica a presença da toxina fosfolipase A2 presente no veneno da abelha. A análise é feita por meio de um teste imunoenzimático (imuno-
cromatografia de fluxo lateral), que usa anticorpos do veneno como reagente. O resultado é revelado em até 10 minutos pela alteração de cor, como num teste clássico de gravidez. Como o teste mensura a concentração de fosfolipase na corrente sanguínea, ele também pode ser usado para monitorar o tratamento e avaliar se está surtindo efeito.
Este é o primeiro soro antiapílico a ser utilizado em pacientes humanos e já com sucesso, como também o primeiro do mundo que poderá ser exportado brevemente pelo Brasil para outros países. Além disso, foi desenvolvido 100% em uma universidade pública brasileira e também produzido por institutos públicos.
Saiba como evitar acidentes por abelhas
Fonte: Revista Pesquisa Fapesp