“Quando chegou, a eólica destruiu tudo! Tinha muita mata, muito morro, muita lagoa. E, em dois anos, destruíram tudo para implantar as usinas.” Maria Joelma da Silva – Moradora de Enxu Queimado
Este é resultado da transformação paisagística e social experimentada pela comunidade pesqueira de Enxu Queimado, localizada no município de Pedra Grande, litoral do Rio Grande do Norte, a 142 km de Natal.
O que era apresentado como esperança de progresso e melhoria de qualidade de vida se transformou desilusão, destruição e desespero para os moradores da comunidade tradicional que começou a se formar em meados de 1920. Devido ao barulho produzido pelas turbinas que rodeiam o local, fica muito difícil ouvir os relatos de Maria Joelma, presidente da Colônia de Pescadores de Enxu Queimado.
“Eu tinha 15 anos quando minha família se mudou cá. Era uma das mais deslumbrantes praias do litoral potiguar!” Em sua adolescência, os fins de semana foram marcados por momentos de lazer no “encontro de morros, que formava lagoas lindas no inverno”.
Sob o argumento do progresso e dos empregos que seriam gerados, as instalações dos parques de energia renovável prometiam não gerar impactos para os nativos, mas não foram acompanhadas pela realização de amplas discussões com as comunidades tradicionais. “A usina eólica criou empregos quando chegou aqui, mas foram temporários, e trouxe muitos outros problemas”, revela José Silva de Melo, conhecido como Xará na comunidade onde nasceu, cresceu e trabalha há 35 anos como pescador.
Após mais de uma década do início de funcionamento, os 24 parques eólicos implantados e em construção mudaram a paisagem local, dividiu a comunidade, deslocou os jovens da pesca artesanal e formou a geração que as pessoas chamam de ‘filhos dos ventos’, que ficaram sem paternidade. “Sem contar que delimitou o acesso da população local, hoje em dia tudo é cercado, ninguém tem acesso a espaços naturais sem permissão”, reclama Joelma. As estradas são uma das poucas benfeitorias reconhecidas pela comunidade.
Com o passar dos anos, após a instalação completa dos 12 parques em operação na região e os 11 que aguardam Despacho de Requerimento de Outorga (DRO), os empregos para os nativos rarearam. Os poucos que restam atuam basicamente no trabalho braçal, para cavar as valas de instalação dos aerogeradores de mais um parque.
Segundo a pesquisadora Moema Hofstaetter, doutora em Turismo e Desenvolvimento, que integra o grupo de pesquisas do Laboratório Interdisciplinar Sociedades Ambientais e Territórios (LISAT) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), não há sequer dados que precisem o número de empregos gerados pelas eólicas.
“Não há interesse que esses números venham à tona, porque eles não são positivos. Esse discurso de emprego é mentiroso, porque o trabalho gerado é precário, sazonal e de baixa remuneração. Não resolve a questão da pobreza, não gera desenvolvimento, avalia Moema.
Impactos negativos se acumulam
- As dunas ganharam estradas de cascalhos por onde passam os veículos responsáveis pela manutenção dos equipamentos;
- Pássaros em sua rota de migração morrem ao se chocar com as hélices;
- O barulho gerado pelos cataventos é tão alto como as torres;
- À noite, luzes vermelhas piscam nos aerogeradores, com potencial para desorientar as tartarugas que desovam na região;
- A intervenção humana com a retirada da vegetação nativa também acelerou o processo de movimentação das dunas e o paredão de areia parece cada vez mais próximo da comunidade.
Ameaça à pesca artesanal na terra e no mar
No estado que lidera nacionalmente a produção de energia eólica, com patamar de capacidade produtiva superior a 5 Gigawatts (GW), as comunidades tradicionais reclamam que a autossuficiência foi conquistada por meio da retirada dos vários grupos humanos de seus espaços, deslocando as pessoas ou submetendo-as ao interesse de grupos que não são de pescadores, agricultores ou ribeirinhos.
Segundo o pesquisador Cláudio Negrão, que estuda a inexistência de reserva extrativista marinha e costeira no Rio Grande do Norte, em todos os municípios que contam com as estruturas para geração de energia eólica as comunidades tradicionais sofrem problemas.
“Em Macau presenciei o mangue sendo aterrado para construção de casa e condomínios, o que acaba com a pesca do marisco. Em Galinhos, vi uma ordem de despejo e demolição dos ranchos no mar para que num terreno atrás construa-se um resort, enquanto restaurantes e pousadas avançam nas construções a poucos metros do mar. Em Diogo Lopes, que já é uma reserva de desenvolvimento sustentável, eu vi eólicas na praia e construção de casas nas dunas. E aqui em Enxu, que já está cercada pelas eólicas em terra, agora o anúncio dos parques offshore (no mar), além de ameaças de pessoas que se dizem proprietárias das terras”, conta Negrão.
As características naturais que fazem o ambiente propício para a energia dos ventos encontrarem solo fértil, também representam uma ameaça à continuidade da atividade artesanal pesqueira.
E o futuro é ainda mais incerto…
O Rio Grande do Norte pode se tornar em breve o primeiro estado do país a ter produção de energia eólica offshore. O Governo do Estado já assinou memorando de entendimento com a Internacional Energias Renováveis (IER) para implantação de projetos de geração de energia eólica offshore e produção de hidrogênio verde.
A decisão é vista com preocupação por pesquisadores que alegam a falta de estudos de impacto ambiental e de diálogo com as comunidades. “Estou sentindo falta do debate do governo do estado com as comunidades”, reclama Cláudio.
Quem defende os aerogeradores offshore, atribui à força e regularidade dos ventos marinhos um funcionamento com mais continuidade do que em terra, o que poderia gerar até 60% mais energia do que uma turbina eólica terrestre. Porém, para Moema Hofstaetter, “há um vazio de estudos, não sabemos de fato o que pode acontecer”.
A pesquisadora lembra que “há a questão do cabeamento, do campo eletromagnético, das aves e populações marítimas” que precisam ser analisadas antes de se decidir pelas instalações.
Conflito fundiário
Outro problema é a questão das terras das populações tradicionais. “Estamos na luta para garantia do território e evitar que a especulação imobiliária, através da empresa Teixeira Onze, que se diz dona das terras através da posse de um documento de 13 anos, faça a comunidade perder seus vínculos ancestrais, profissionais, afetivos e familiares”, afirma Leonete Roseno, Educadora Popular, que integra o Comitê de Defesa do Território Pesqueiro da Praia de Enxu Queimado. Ela vive no local, desde 2011, e é casada com um pescador que está na região há 34 anos.
Depois de uma decisão liminar da primeira instância favorável à empresa, os moradores da comunidade pesqueira conquistaram a suspensão temporária da reintegração de posse. Apesar de reconhecer como uma vitória para a comunidade, Leonete ressalta os desafios para que a comunidade continue mobilizada pela conquista definitiva da permanência na propriedade.