MP de Mato Grosso do Sul aponta violações ambientais em fazenda de personagem da novela “Terra e Paixão” da Rede Globo de Televisão
Segundo a Rede Globo, a novela “Terra e Paixão”, de Walcyr Carrasco, é um sucesso de audiência. Em sua última semana, a trama ambientada no Mato Grosso do Sul alcançou uma média de 32 pontos, superando a antecessora “Travessia“, de Glória Perez, que registrou a pior audiência da história das novelas das nove, com 24 pontos. O resultado foi comemorado pelos executivos da emissora antes mesmo da exibição do último capítulo, programado hoje, e consolida a recente onda de novelas rurais, inaugurada com o remake de “Pantanal“, em 2022, e mantida com a estreia de “Renascer”, que sucede “Terra e Paixão” na faixa das nove.
O roteiro de Walcyr conta a história de Antônio La Selva, um poderoso e inescrupuloso latifundiário vivido por Tony Ramos. Junto à esposa Irene, encarnada por Glória Pires, o personagem comete uma série de crimes visando tomar a propriedade de sua rival, a professora Aline, representada por Bárbara Reis.
Por trás das câmeras, o cenário escolhido pela Rede Globo foi a Fazenda Annalu, localizada em Deodápolis, MS. Ali foram gravadas as numerosas cenas aéreas com as paisagens do agronegócio, entre maquinários agrícolas e lavouras colossais. Em setembro passado a Revista Globo Rural, do mesmo grupo da emissora de tv, publicou uma matéria sobre a tal fazenda, mostrando a propriedade como se fosse um paraíso ecológico que associava produção agropecuária com o termo da moda, a sustentabilidade, uma verdadeira “fazenda de novela” segundo consta no texto. Na matéria, o proprietário da vida real conta a história da propriedade e celebra a diversificação de culturas e os investimentos em tecnologia, além do compromisso com a tal sustentabilidade. Segundo o dono, em entrevista ao UOL, foi o autor, Walcyr Carrasco, quem deu o ok final para que ela fosse escolhida como locação.
É de cair o queixo!!!
Vários meios de comunicação e o site De Olho nos Ruralistas apresentam a realidade sobre a propriedade e proprietários. Assim como o império fictício da família La Selva da novela global, a Fazenda Annalu coleciona uma série de violações ambientais, como dano a Área de Preservação Permanente (APP), instalação não autorizada de drenos, armazenamento e despejo de agrotóxicos em local inadequado, desvio de curso d’água para piscicultura, canais de drenagem irregulares, construção de uma área de lazer dentro de APP às margens do Rio Dourados e criação de animais exóticos sem licença ambiental.
A locação paradisíaca está na mira do Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPMS), ao menos desde 2016, quando o Nugeo (Núcleo de Geoprocessamento e Sensoriamento Remoto) do órgão identificou, por meio de imagens de satélite, percentual de reserva legal aquém do exigido por lei – apenas 7,45%, enquanto o Código Florestal manda preservar 20% da área total.
Alvos de inquérito instaurado em 2018, os donos da propriedade assinaram TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) em 31 de março de 2022, menos de um ano antes do início das gravações da novela. Todos os problemas foram constatados por equipe do Daex (Departamento Especial de Apoio às Atividades de Execução) do MPMS em vistoria feita em 2019.
Conforme o relatório do Daex, em junho de 2019, quando o imóvel foi inspecionado, parte da área (315 hectares) era ocupado por lavouras de soja e milho, enquanto outras áreas estavam destinadas aos tanques de peixes escavados, pecuária bovina em pasto e confinamento. A piscicultura desenvolvida na propriedade ocorre em 37 tanques escavados, com uma área inundada de aproximadamente 46 hectares. As tilápias eram criadas, contudo, com autorização ambiental para aquicultura expedida em 2007 e que estava vencida desde janeiro de 2010 – há 9 anos, portanto.
Posteriormente, em audiência, ainda segundo registros do MP ao longo do inquérito, os proprietários da fazenda admitiram responsabilidade pelo desvio do curso do Rio Dourados, um dos limites geográficos da propriedade, pela instalação de 54 drenos para captação d’água sem autorização dos órgãos ambientais.
A pecuária também não era desenvolvida dentro das conformidades, já que o MP verificou a presença de gado na área de reserva legal e determinou a imediata suspensão da atividade no espaço a ser recuperado.
De Olho nos Ruralistas teve acesso ao Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) elaborado em março de 2022 pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul (MPMS), onde estão listadas as irregularidades do imóvel de 1.768 hectares. De acordo com o documento, os proprietários teriam um prazo de dois meses para executar as adequações. Quase dois anos depois, boa parte dos passivos ambientais se mantém.
O imóvel é uma das nove propriedades rurais administradas pelo Grupo Valor Commodities, uma das maiores empresas de plantio e comercialização de soja e milho de Mato Grosso do Sul, que totalizam 50 mil hectares, e está em nome de Aurélio Rolim Rocha, diretor do grupo, filho de Aurélio Rocha, condenado em 2019 por fraude.
Aos 30 anos, Lelinho, como é conhecido, foi o responsável pela negociação com a Rede Globo, que iniciou as gravações na Annalu em fevereiro de 2023. Na ocasião, o próprio fazendeiro recebeu o elenco de “Terra e Paixão”, com direito a foto, postada em sua conta no Instagram, abraçado a Tony Ramos. A imagem aparece no destaque desta reportagem, com a área dedicada ao confinamento de gado ao fundo.
Os passivos ambientais são apenas a ponta do iceberg no histórico da Fazenda Annalu e da família Rocha. Em uma série de reportagens, o observatório do agronegócio De Olho nos Ruralistas está detalhando a dimensão do império fundiário controlado pelo Grupo Valor, além de suas relações econômicas com gigantes do agronegócio brasileiro — incluindo uma divida milionária com a Seara, do grupo JBS. Uma das reportagens destaca a degradação do Rio Dourados e seus afluentes pelos donos da fazenda alugada pela Rede Globo que há anos desenvolve a famosa campanha de marketing “AGRO É TECH, AGRO É POP, AGRO É TUDO”: Donos de fazenda de “Terra e Paixão” desviaram curso de rio e criaram peixes sem licenciamento.
Os Rocha
A família de Rocha chegou à região de Dourados (MS) por ocasião da expansão da fronteira agrícola brasileira. O avô de Lelinho, Nilton Rocha Filho, que via neste contexto uma oportunidade, começou com uma pequena empresa de venda de grãos. Nos anos seguintes, passaram a expandir a lavoura. Em 2003 Nilton adquiriu a Annalu, mas dois anos depois vendeu para a empresa de comércio de grãos Granol, pelo valor de R$ 2,95 milhões de reais. Em 2016, os netos do antigo proprietário, Aurélio Rolim Rocha (Lelinho) e Nilton Fernando Rocha Filho, readquiriram a propriedade por R$ 10 milhões. Quando readquiriram a Annalu, o real objetivo da família era torná-la um cartão de visita dos negócios, quando eles nem poderiam imaginar que essa “vitrine” dos negócios da família furaria a bolha do agronegócio e atrairia o novelista e escritor Walcyr Carrasco, autor de “Terra e Paixão”.
Palavras de Lelinho segundo a reportagem de Globo Rural: “O objetivo que ele colocou para nós era, realmente, retratar uma nova visão, um novo olhar sobre o agronegócio. E a novela, acho importante falar isso também, ela não é uma novela sobre o agro, ela é uma novela no agro. Então, ela está mostrando, de certa forma, uma realidade do novo produtor rural brasileiro, que é um cara que tem as suas preocupações com seu entorno, com o meio ambiente, é um cara que quer desenvolver uma agricultura extremamente moderna e, como a nossa fazenda é muito diversificada, a gente está indo nessa linha”.
Diferentemente da propriedade do personagem La Selva, que tem na produção de soja e milho o seu negócio, a Annalu desenvolve agricultura – tanto convencional, quanto irrigada -, criação de gado – extensiva e intensiva, por meio de confinamento – e piscicultura. O proprietário se orgulha do grande investimento em tecnologias como irrigação, modernas e grandiosas máquinas, pois entende que precisa tirar o máximo de proveito da terra e produzir com eficiência. Ele também destaca a agricultura regenerativa, investindo em correção do solo para recuperar a terra, ressaltando que a agricultura 4.0 é muito presente na Annalu. Sustentabilidade é um dos pilares da fazenda de Lelinho, segundo ele mesmo.
O produtor que comanda o empreendimento rural, destaca ainda que a fazenda já está antecipando um movimento futuro, o de produzir algo com valor ambiental agregado, e ressalta que o produtor rural brasileiro é um preservacionista do país. “Aqui a gente produz com sustentabilidade, com qualidade, com rastreabilidade. Estamos muito focados em fazer da fazenda um grande local de desenvolvimento de tecnologias, mas também de produção de qualidade e de sustentabilidade”.
Alvo por sonegação
Apesar da longa lista de irregularidades identificadas na Fazenda Annalu, não foi pelos atos contra o ambiente que a família Rocha ficou conhecida na região de Dourados. Aurélio, que tem o mesmo nome do filho Lelinho, seu pai Nilton Rocha Filho e seu irmão Nilton Fernando Rocha foram presos em 2006 por sonegação fiscal de pelo menos R$ 79 milhões. Depois de doze anos de processo, somente um deles foi condenado, Aurélio, a 6 anos e 9 meses de prisão, em regime semiaberto. A sentença do juiz da 3ª Vara Federal de Campo Grande, Bruno Teixeira, absolveu Nilton Fernando Rocha, irmão de Aurélio.
Na época, o grupo familiar se chamava Campina Verde. Em fevereiro de 2020, no início da pandemia, a empresa passou a se chamar Valor Commodities e os acusados pelas fraudes deixaram de ser sócios para a entrada de Lelinho e de seu primo, Nilton Fernando Rocha Filho. O comando, no entanto, continuou nas mãos de Aurélio e Nilton Fernando (pai e tio de Lelinho).
Inicialmente, a denúncia apontou que a família Rocha fez uso de empresas fantasmas (ou satélites), compostas por laranjas e dirigidas por testas de ferro, no intuito de maquiar as transações de vendas de grãos.
De acordo com o advogado João Arnar Ribeiro, em declaração dada ao Campo Grande News, não há condenação contra o empresário porque a decisão foi suspensa por recurso. “Enquanto há recurso, não há condenação. Eventuais sentenças de primeiro instância estão suspensas por conta do recurso. Então, não existe condenação. O princípio constitucional da inocência presumida garante que ninguém seja considerado culpado até sentença definitiva transitado em julgado”. A defesa informa que Aurélio e os irmãos foram absolvidos na ação principal e os processos acessórios estão sendo discutidos nos tribunais.
Segundo o site do grupo (que no momento de finalização desse post saiu do ar), a companhia detém 50 mil hectares em Caracol, Deodápolis, Douradina, Nioaque, Porto Murtinho, Corumbá, todos municípios do Mato Grosso do Sul, uma empresa de aviação, seis postos de abastecimento de aeronaves e um setor de ativos imobiliários. A área de terras equivale a mais da metade do tamanho de Deodápolis, onde fica a Fazenda Annalu.
Vídeo revela império agropecuário do clã – De Olho nos Ruralistas
De Olho nos Ruralistas enviou questionamentos aos representantes do grupo Valor Commodities, ao Imasul – Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul e à Rede Globo. Não houve retorno até o momento.
A RuraltecTV coloca o espaço à disposição para as considerações dos proprietários da Fazenda Annalu e dos órgãos e empresas citados no post.