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Indígenas demarcam território onde o governo está ausente

Cacique Juarez Saw, da aldeia Sawré Muybu, com placa para demarcação de território em Itaiatuba, no Pará - Foto: Adriano Machado

Cinquenta guerreiros munduruku abrem caminho com facões pela mata da floresta amazônica, demarcando as fronteiras de suas terras ancestrais para realizar uma tarefa que o governo brasileiro não concluiu. Ao criarem um caminho de seis metros de largura através da mata densa, muitas vezes escurecida pela copa da floresta acima, os munduruku param a cada quilômetro para pregar placas nos troncos das árvores, com os dizeres: “Governo Federal, Território Sawré Muybu, Terra Protegida”.

É um ato silencioso, mas desafiador, de um povo que luta há décadas para exigir que o governo brasileiro reconheça integralmente suas terras ancestrais, uma medida que garantiria proteção legal contra madeireiros, garimpeiros e até mesmo os projetos de infraestrutura do próprio governo. “Este não é o nosso trabalho. É obrigação do governo demarcar as terras indígenas, mas eles não estão fazendo isso”, disse Juarez Saw, cacique da aldeia Sawré Muybu, depois que seus homens colocaram a 20ª e última placa de sua jornada de oito dias no mês passado. A Fundação Nacional do Índio (Funai) disse que estava sofrendo com falta de pessoal, mas trabalhando para estabelecer os limites das terras ancestrais dos indígenas, um processo que foi interrompido no governo de Jair Bolsonaro.

Juarez Saw Munduruku, Cacique da aldeia Sawré Muybu, na terra indígena de mesmo nome ainda não demarcada. Os mundurukus lutam pela demarcação do território desde 2016
Juarez Saw Munduruku, Cacique da aldeia Sawré Muybu, na terra
indígena de mesmo nome ainda não demarcada. Os mundurukus
lutam pela demarcação do território desde 2016
Mundurukus montam acampamentos no meio da mata. Munidos de foices e facões, eles abrem picadas mata a dentro. Trata-se da autodemarcação da terra indígena Sawré Muybu - Foto: Marcio Isensee e Sá
Mundurukus montam acampamentos no meio da mata. Munidos
de foices e facões, eles abrem picadas mata a dentro. Trata-se da
autodemarcação da terra indígena Sawré Muybu – Foto: Marcio Isensee e Sá

Os homens munduruku são acompanhados na expedição por mulheres e crianças. No acampamento comunitário na floresta, onde redes balançam entre as árvores, as mulheres preparam a comida: arroz, farinha de mandioca e caça. Quando os caçadores não conseguem encontrar um porco selvagem, eles comem macacos. Enquanto elas cozinham, os jovens munduruku pulam no rio para brincar. A última vez que os munduruku desbravaram as fronteiras deste território foi há uma década, tempo suficiente para que a maior floresta tropical do mundo apagasse seu trabalho com vegetação alta.

O território Sawré Muybu inclui cerca de 178.000 hectares de floresta às margens do rio Tapajós, um afluente outrora intocado do Amazonas que ainda é um dos únicos grandes rios do Brasil sem uma represa hidrelétrica. A área tem enfrentado invasões crescentes de madeireiros ilegais e garimpeiros, poluindo os rios e envenenando os peixes que alimentam os munduruku com níveis de mercúrio potencialmente fatais.

Os indígenas na operação de autodemarcação, instalando mais uma placa de aviso de terra indígena protegida
Os indígenas na operação de autodemarcação, instalando mais uma placa de aviso de terra indígena protegida

Outro grupo de 37 homens munduruku entrou na floresta por uma rota seguindo o rio Jamanxinzinho demarcando o lado oriental do territorio. A luta dos munduruku para defender suas terras também é parte da batalha para impedir que a amazônia passe de um ponto de destruição sem volta, de acordo com ambientalistas. O conhecimento, as práticas e o status legal dos povos indígenas do Brasil os tornam guardiões ideais da floresta tropical, o que é essencial para desacelerar o aquecimento global, dizem eles.

A demarcação formal de um território indígena é um passo fundamental para garantir proteções garantidas na constituição brasileira. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o cargo no ano passado prometendo retomar o processo de reconhecimento de novos territórios indígenas, que seu antecessor Jair Bolsonaro havia interrompido.

O povo jabuti. Para evocar a inteligência e a estratégia de defesa desse bicho, os homens pintam a pele com traços iguais aos da casca do animal - Foto: Marcio Isensee e Sá
O povo jabuti. Para evocar a inteligência e a estratégia de defesa desse bicho,
os homens pintam a pele com traços iguais aos da casca do animal – Foto: Marcio Isensee e Sá

A expedição dos munduruku para demarcar suas terras começou em rios sinuosos, com cinco longos barcos navegando lentamente sob uma cobertura de vegetação densa. Um dia, a expedição encontrou uma sucuri no rio e se preparou para matar o enorme animal, cuja gordura é usada pelos munduruku por suas propriedades anti-inflamatórias. Mas a cobra estava tão inchada por ter engolido uma presa recentemente que eles não conseguiram tirá-la da água.

Quando os caçadores voltaram com um macaco-prego em outro dia, um menino munduruku correu para salvar dois bebês macacos agarrados à mãe. Ele os levou aos seus cuidados e os carregou pelo resto da caminhada de 36 quilômetros. Os munduruku também se depararam com acampamentos ilegais de garimpo de ouro na expedição, em encontros tensos, mas pacíficos. Desde que assumiu o poder há mais de um ano e meio, o governo Lula reconheceu 10 novos territórios. Há 62 territórios indígenas aguardando sua assinatura, e cerca de mais 200 em estudo ou com fronteiras delimitadas, mas ainda desprotegidos pelo governo, tornando-os vulneráveis à invasão.

Juarez Saw Munduruku. Só a homologação livrará a terra Sawré Muybu de usinas, garimpos e madeireiros - Foto: Ana Mendes/Amazônia Real
Juarez Saw Munduruku. Só a homologação livrará a terra Sawré Muybu
de usinas, garimpos e madeireiros – Foto: Ana Mendes/Amazônia Real
Pintada na aldeia, a placa da autodemarcação evoca o passado guerreiro desse povo - Foto: Marcio Isensee e Sá
Pintada na aldeia, a placa da autodemarcação evoca o passado
guerreiro desse povo – Foto: Marcio Isensee e Sá

Embora os defensores dos povos indígenas defendam que o governo acelere o processo, as promessas de Lula provocaram reações contrárias de um Congresso conservador, com presença de um poderoso lobby do agronegócio, além da pressão de próprios aliados políticos do governo, que dizem que mais estradas, ferrovias e usinas de energia são necessárias na amazônia para gerar empregos.

Pairando sobre o esforço dos munduruku para demarcar a terra Sawré Muybu está um plano para construir uma represa hidrelétrica que poderia inundar a maior parte do território. O projeto de 8.000 megawatts foi arquivado em 2016 pela agência ambiental Ibama por não consultar os munduruku ou fornecer estudos de impacto adequados.

Em maio, a privatizada Eletrobras pediu a atualização desses estudos, segundo a agência reguladora Aneel. A Eletrobras não respondeu a um pedido de comentário. “Isso dá um indicativo de que eles não desistiram do projeto”, disse Suely Araújo, que arquivou o plano quando era presidente do Ibama.

O território Sawré Muybu também enfrenta uma ameaça indireta dos planos do governo de construir uma ferrovia de 1.000 km para exportar grãos do estado do Mato Grosso até um porto no Tapajós, onde barcaças transportam as colheitas para navios maiores. Líderes indígenas temem que o projeto ferroviário, apoiado por fazendeiros e comerciantes multinacionais de grãos para cortar custos de transporte, possa facilitar o acesso de madeireiros, grileiros e mineradores às suas terras.

A Terra Indígena Sawré Muybu, dos Munduruku, fica às margens do Rio Tapajós - Foto: Ana Mendes/Amazônia Real
A Terra Indígena Sawré Muybu, dos Munduruku, fica às margens
do Rio Tapajós – Foto: Ana Mendes/Amazônia Real
Ameaçada de morte no Brasil, a indígena Alessandra Korap Munduruku está entre seis ativistas do planeta que têm seu trabalho reconhecido pelo prestigioso Prêmio Goldman de Meio Ambiente - Foto: Prêmio Goldman de Meio Ambiente
Ameaçada de morte no Brasil, a indígena Alessandra Korap Munduruku
está entre seis ativistas do planeta que têm seu trabalho reconhecido
pelo prestigioso Prêmio Goldman de Meio Ambiente – Foto: Prêmio Goldman de Meio Ambiente
A ativista Alessandra Korap Munduruku pede a palavra em audiência pública na Câmara dos Deputados, em 2019 - Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real
A ativista Alessandra Korap Munduruku pede a palavra em
audiência pública na Câmara dos Deputados, em 2019
Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real

Os munduruku, que hoje somam cerca de 17.000 segundo o último censo do IBGE, vivem há milhares de anos ao longo do médio e alto curso do rio Tapajós em 11 territórios, dos quais apenas dois têm pleno reconhecimento e proteção legal do governo. A Funai concluiu um estudo em 2013 estabelecendo a reivindicação munduruku à terra Sawré Muybu, mas nenhum governo deu o próximo passo de demarcar oficialmente as fronteiras do território.

Alessandra Korap Munduruku, uma liderança do povo, disse no acampamento que essa falta de demarcação incentivou garimpeiros, madeireiros “e a invasão de nossas terras”. “Nós estamos fazendo essa luta dos guerreiros pegar o facão, descalço, com chinelo quebrado, levando picada de todo tipo de inseto, passando sede nesta floresta, para dizer que a gente não vai desistir”, afirmou. “A gente não está mendigando aqui. A gente apenas está querendo nosso direito que sempre e principalmente é a terra.”

Fonte: Reuters – Adriano Machado, de Itaituba, Pará

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