Em algumas áreas o acesso ainda é restrito pelo alagamento e muitos produtos que seriam vendidos para merenda escolar, feiras e usados para o próprio consumo, foram perdidos
Como se recuperar da tragédia. Essa é a questão do momento. O nível das águas já começou a diminuir no estado, mas, para o segmento da fruticultura, a pior fase das perdas com as enchentes pode ainda estar por vir. As pequenas propriedades começam a contabilizar as perdas causadas pelas enchentes no Rio Grande do Sul. Em algumas lavouras, o acesso é restrito pelo alagamento e muitos produtos que seriam vendidos para merenda escolar, em feiras ou nas próprias propriedades foram perdidos.
Lavouras, silagens, estruturas ficaram embaixo d’água. Área plantadas com feijão que a colheita já tinha que ter sido feita, vagens apodrecem e grãos estão brotados. Tudo perdido, não tem mais o que fazer. É ficar sem renda, porque viviam disso e não têm nem serviço fora, porque não têm como se deslocar, pois estão ilhados ainda.
A produção de hortaliças destinadas à merenda escolar, mesmo protegidas por plásticos, as folhas de baixo dos maços começam a estragar. O maior prejuízo foi nas alfaces, como as da variedade americana, que apodreceram todas. Onde se plantou repolho roxo, o adubo se foi e será necessário recuperar o solo. Em outras áreas, o que havia sido semeado terá que ser refeito. O aipim, que é fonte importante de renda nas cidades, também apodreceu.
Muitos produtores ainda não têm a real dimensão dos prejuízos, isso porque muitas áreas ainda estão alagadas. Em muitas propriedades a água começou a baixar, mas os níveis subiram novamente, alagando boa parte novamente.
As intensas chuvas e as enchentes contínuas que assolam o Rio Grande do Sul têm trazido sérias dificuldades para a reconstrução das áreas de produção de olerícolas, segmento fortemente atingido, sofre com os efeitos desse evento climático, que alcançou quase todos os municípios gaúchos, totalizando 461 diretamente afetados dos 497 existentes.
A Emater/RS-Ascar, por meio de seus extensionistas, está empenhada em avaliar as perdas no setor agropecuário, especialmente na olericultura, presente em aproximadamente 46 mil unidades produtoras. Nos dois últimos Informativos Conjunturais da empresa, relatos apontam perdas severas de folhosas e hortaliças em todas as regiões do estado. Os solos, em muitas áreas, permanecem excessivamente úmidos ou encharcados, o que dificulta a semeadura e o transplante de mudas, assim como o manejo das hortaliças já implantadas. Também está prejudicando o desenvolvimento e a colheita das olerícolas estabelecidas. Mesmo em ambiente protegido, os cultivos apresentaram reduzido desenvolvimento devido à alta umidade e aos dias muito encobertos.
A magnitude dos danos é impressionante. A olericultura gera anualmente cerca de R$ 5,6 bilhões para a economia estadual, ocupando uma área superior a 71 mil hectares. Lamenta-se especialmente o impacto nas folhosas, culturas mais sensíveis, cuja recuperação demandará algumas semanas.
Na região serrana os danos foram imensos. A produção da região corresponde a 80% dos produtos da Ceasa Serra em Caxias do Sul, e 30% do abastecimento na estrutura em Porto Alegre. Muitas lavouras também destruídas e as que restam com a produção prejudicada, apresentando plantas bem danificadas. As culturas mais atingidas foram tomate, cenoura, beterraba, abóbora, principalmente as folhosas. Pouco se pode aproveitar para o comércio. A Ceasa Serra, em Caxias do Sul, está operando de forma normal, pois não foi atingida pela inundação. Contudo, o volume comercializado está muito menor, uma vez que muitos produtores foram atingidos. Os produtos ofertados apresentam prejuízo não só na quantidade, mas em qualidade. Os produtores ainda enfrentam a impossibilidade de realizar o manejo das áreas para a reconstrução de canteiros e verifica-se perdas de solo, nutrientes e matéria orgânica.
A Prefeitura de Caxias do Sul, através da Secretaria Municipal da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (SMAPA), anunciou como medida emergencial para auxiliar os agricultores da região afetados pelo alagamento na Ceasa de Porto Alegre, que esses agricultores poderão utilizar a estrutura da Ceasa Serra para comercialização de suas produções. O acesso à Ceasa Serra está liberado para agricultores e compradores de todo o Estado. Produtores que ainda não possuem cadastro podem acessar o local até duas vezes, enquanto compradores com CNPJ têm acesso uma vez. Após esse período, é necessário fazer o cadastramento, para o qual foram divulgados os documentos necessários.
Além das perdas na horticultura, a parte estrutural também preocupa, e é onde a Emater/RS-Ascar concentra as atividades no momento. As ações de recomposição das áreas é a prioridade, assim como trabalhar o aspecto anímico dos agricultores, que chegam a cogitar deixar o cultivo. Os extensionistas estão fazendo um levantamento do que aconteceu em toda a região, auxiliando as prefeituras, para depois, com calma, entender toda a situação, ver como ajudar mais, inclusive auxiliar o governo a criar outras políticas públicas.
Outra entidade que convive diariamente com o panorama da agricultura local é o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Caxias do Sul. A equipe do sindicato aponta a necessidade de amparar os agricultores, que se sentem perdidos em meio às incertezas, oferecendo todo o acompanhamento possível, com visitas no interior, com os associados, destacando que muitos estão com dificuldades de vender a produção que resta e sofrendo com acessos precários. É um suporte moral, de comunicação, até de transporte em determinados locais. Observa-se muitas parreiras destruídas, safra comprometida, açudes que estouraram. A perda foi muito grande.
A região de Bagé, produtores enfrentam dificuldades no desenvolvimento das folhosas em ambiente protegido, devido à alta umidade e baixa luminosidade. Em Uruguaiana, na Fronteira Oeste, a produção de alface foi reduzida em 50%, enquanto em Alegrete as perdas atingiram entre 50% e 60% na produção de repolho, cenoura e beterraba. Em Ijuí, o clima úmido e chuvoso prejudica o desenvolvimento das culturas, tanto em ambiente protegido quanto a céu aberto, afetando a qualidade dos produtos.
Na região de Pelotas, o manejo e a implantação das áreas de hortaliças foram prejudicados pelas chuvas intensas, assim como em Rio Grande, onde áreas de produção foram inundadas. O replantio tem sido lento devido às condições climáticas desfavoráveis. Em Santa Rosa, muitos canteiros de hortas comerciais foram destruídos, mas os produtores estão trabalhando na reconstrução, embora de forma gradual.
O desabastecimento já é uma realidade em muitas regiões, com aumento nos preços das hortaliças devido à escassez de produtos. Em Cachoeira do Sul, Santa Maria, e outras localidades, as perdas são expressivas, afetando diretamente a produção e a economia local. reconstrução das hortas e a recuperação da produção demandarão tempo e esforço por parte dos agricultores, que enfrentam um cenário desafiador em meio às adversidades climáticas.
A semeadura de inverno tradicionalmente ocorre entre os meses de maio e junho e há áreas de plantio que já não existem mais, arrasadas pela enxurrada, como em vales e encostas de morros. A chuva mudou a geografia dos terrenos e, embora ainda não se saiba quanto, o sentimento é de que haverá redução de plantio. E em terras afetadas, queda de produção, produtividade e qualidade dos grãos são uma tendência, já que os solos foram muito castigados severamente.
Fruticultura
O nível das águas já começou a diminuir no estado, mas, para o segmento da fruticultura, a pior fase das perdas com as enchentes pode ainda estar por vir. Com plantações alagadas e armazéns destruídos, os prejuízos que as inundações causaram a algumas das principais culturas agrícolas do Rio Grande do Sul, como soja, arroz e milho, são visíveis.
Vários pomares ficaram embaixo d’água, e não se sabe como a planta vai reagir a esse clima. As chuvas podem não ter derrubado as árvores, mas o grande temor é de que a inundação das plantações leve ao apodrecimento das raízes, o que representaria a morte das plantas em culturas importantes no estado, como pêssego, maçã, uvas e citros.
No caso do pêssego, a colheita concentra-se no mês de dezembro, mas uma parte menor dos trabalhos vai até janeiro. Com isso, no momento, os pessegueiros estão na fase de dormência, o que significa que os estragos decorrentes das chuvas que caíram no estado entre abril e maio podem aparecer apenas nas próximas safras.
Em 2022, Rio Grande do Sul produziu 137,5 mil toneladas de pêssego, segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse volume corresponde a mais de 65% da produção nacional. As enchentes que castigaram o estado em setembro de 2023 já haviam causado uma quebra de safra nas áreas de cultivo de pêssego. As perdas se acentuaram no mês seguinte, com a ocorrência de chuvas de granizo. Grande parte dos pessegueiros que ficam em terrenos elevados escaparam dos alagamentos, mas as árvores que estão em pontos mais baixos ainda correm riscos. O grande volume de água pode prejudicar e até matar pessegueiros, mas os efeitos podem aparecer apenas na próxima safra.
Com os problemas climáticos e o aumento dos preços dos insumos, é possível que os produtores de pêssego acabem adiando a compra de fertilizantes e defensivos e as podas de inverno, o que pode atrasar o calendário da safra e reduzir o tamanho dos frutos.
Já para os produtores de maçã e citros, os prejuízos podem se materializar ainda na atual temporada. Até o início das enchentes, faltava colher 10% da área de cultivo de maçãs no Rio Grande do Sul e 60% do que restava se perdeu com as inundações. O estado produz, anualmente, 435 mil toneladas da fruta, o que corresponde a 41% da colheita nacional.
A janela de colheita de citros no Rio Grande do Sul estende-se de outubro a novembro. As câmaras frias podem ajudar no armazenamento das frutas, mas muitos desses equipamentos ficaram destruídos após as enxurradas. Certamente haverá perdas nesta safra, principalmente daqui a três meses. Vai ser um efeito a posteriori. De acordo com a Emater, em Santa Rosa, grande parte das plantas cítricas apresenta carga e frutos pequenos, além da presença de cochonilha, ácaro e pulgão. No município há oferta de variedades precoces de bergamota Okitsu, Ponkan e Satsuma e de laranja do céu. Já em Soledade, verifica-se atraso no desenvolvimento e na maturação de frutos por falta de luminosidade, além de baixa qualidade.
A região do Vale do Caí teve problemas de diferentes gravidades. Cerca de 80% dos citricultores foram atingidos diretamente e tiveram perda total ou parcial. Outro problema foram os citros precoces devido à alta umidade, o que acarretou uma perda de 70% nas variedades de bergamota Caí e Ponkan. Além dos tardios, que tiveram rachadura das frutas e doenças fúngicas devido também à umidade. Nunca se viu tamanho prejuízo na história da citricultura gaúcha.
Na região da Serra, cerca de 60 hectares de citros em Bento Gonçalves, de um total de 190, foram atingidos direta ou indiretamente. Em Veranópolis, de 140 hectares, 33 foram afetados pelas chuvas. A Emater/RS afirmou que a citricultura foi uma das culturas mais prejudicadas, com queda de frutas e desfolhamento, entre outros problemas. A projeção de perda é de mais de 50% na safra.
Um ponto quase unânime é a preocupação com a falta de mudas e o ingresso de mudas não autorizadas e sem controle de outros estados. Essa é uma aflição dos produtores de Pareci Novo também, por causa do risco da entrada do greening no Rio Grande do Sul. A fiscalização da Defesa Vegetal da Seapi deve ser intensificada, assunto que será prioridade na Secretaria.
Segundo a Abrafrutas, ainda é difícil dimensionar mais precisamente o tamanho das perdas, especialmente porque o interior ainda está muito isolado. Alguns produtores estão em abrigos e sequer têm telefones neste momento. É muito difícil o contato, e acredita-se que nem eles sabem dizer como está sua produção.
Para os técnicos, mesmo com os estragos em culturas em que o estado tem participação relevante e com o bloqueio de estradas, que tem dificultado a distribuição, o país não deverá ter problemas de abastecimento dessas frutas.
Enquanto aguardam o nível das águas baixar para poderem fazer as contas dos prejuízos, os fruticultores do estado começam a renegociar prazos de dívidas e a definir seus próximos passos. Muitos deles consideram incerta sua permanência na atividade. Uma das coisas que mais preocupa os técnicos da Emater-RS é a falta de motivação dos produtores para continuar na atividade agrícola, para reconstruir, além do medo.
As instituições financeiras Sicredi, Banrisul e Banco do Brasil manifestaram amplo apoio aos produtores gaúchos, por meio da prorrogação de prazos e novos créditos rurais com juros subsidiados. Para alguns casos de perda quase total de safra, a Fetag está solicitando anistia do pagamento, principalmente para produtores do Vale do Caí que já tinham sofrido com as últimas duas enchentes de 2023 e estão, inclusive, renegociando financiamentos.
As instituições ficaram de encaminhar a regulamentação da Medida Provisória nº 1216, do Executivo Federal (Subvenção econômica para atendimento às áreas afetadas pelos eventos climáticos extremos localizados no Estado do Rio Grande do Sul), que prevê prorrogação de financiamentos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e do Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (Pronamp).
Outro pedido do setor é que o governo estadual apoie os produtores dos municípios mais atingidos com horas/máquina e doação de insumos. Foi solicitado ainda manter e ampliar o Programa de Recuperação de Solos que o governo já tinha oferecido devido às duas últimas enchentes.
Vinhedos também foram atingidos. Depois de algumas safras ruins em função da seca, este ciclo também não foi bom para a produção de uva no Rio Grande do Sul. Os vinhedos já haviam sofrido com granizo e agora muitos foram devastados pela enchente que atingiu o estado. O Rio Grande do Sul é o maior produtor de uvas do país. As chuvas destruíram parreirais especialmente na Serra Gaúcha, a maior produtora de uvas do estado.
Os acessos na serra gaúcha ainda são difíceis, com estradas quase intransitáveis. Parreirais foram soterrados com o deslizamento de morros, com a terra destruindo o que encontrou pela frente. A maior preocupação dos técnicos nesse momento não é com a produção de uvas, mas sim com os produtores, com relação à segurança do agricultor para voltar a sua propriedade, pois 100% está abalada com toda a situação quem vivem no momento.
Segundo os técnicos da Emater-RS, toda a safra de uva já havia sido colhida na região e está armazenada, por isso não há o risco de desabastecimento de frutos, de vinho, de suco, de espumante. A colheita, realizada entre dezembro e março, impediu que os produtores tivessem perdas significativas no momento com relação à safra. Os vinhedos encontram-se atualmente em período de dormência, que vai do fim do outono até o inverno, com a recuperação das videiras prevista para agosto e o reinício da frutificação em novembro.
Assim como no caso do pêssego, os efeitos das chuvas recentes sobre as plantações podem ainda estar por vir, mas a ampliação da área de plantio poderá compensar as perdas com as inundações e evitar que os prejuízos sejam tão significativos na próxima safra. Com poucos dias de sol, o solo permanece úmido e há dificuldade até para acessar áreas atingidas pelo excesso de chuva. Ainda não dá para contabilizar com precisão o prejuízo, mas é possível ver parreiras cultivadas há décadas no chão, retorcidas. Tudo terá que ser arrancado e replantado, caso o produtor queira continuar na atividade.
Como os vinhedos ficam em regiões de serra, as áreas são mais propícias a deslizamentos. Mas nunca se viu nada parecido. A Emater-RS(http://www.emater.tche.br/site/) estima que pelo menos 500 hectares de parreirais foram danificados. Em muitas áreas, o solo agrícola foi totalmente arrancado chegando na rocha. Nessas áreas não haverá mais condições de formação de novos parreirais ou outro tipo de cultura agrícola. O Rio Grande do Sul tem 44 mil hectares de vinhedos, e 2% deles estariam comprometidos. O total ainda pode crescer, conforme os técnicos forem acessando as propriedades.
A região é a maior produtora de vinhos, sucos e espumantes do Brasil, com 550 vinícolas e cooperativas. A uva representa quase R$ 2 bilhões no valor bruto da produção (VBP) do estado. No ano passado, foram 718 milhões de quilos colhidos e 472 milhões de litros de bebidas feitas a partir das uvas.
Além de lidar com a recuperação dos vinhedos e dos demais pomares, os produtores enfrentam o desafio de restaurar as estradas para o escoamento da produção. O Ministério dos Transportes informou que pelo menos 62 trechos de estradas e pontes no RS precisam ser reconstruídos, com um custo estimado de R$ 1,2 bilhão para o início dos reparos.
Pecanicultura
Logo após dar início, oficialmente, à colheita da noz-pecã no Rio Grande do Sul os produtores se viram em meio à tragédia. Nas diversas cidades por onde a pecanicultura se desenvolve, diferentes danos estão sendo contabilizados pelo Instituto Brasileiro de Pecanicultura (IBPecan), que congrega mais de 100 associados em dois terços da área cultivada e 90% das indústrias de processamento da fruta. O instituto estima uma perda de safra de 80%. Os produtores gaúchos colherão apenas 20%, ou seja, em 2023 tiveram uma produção de cerca de 4,5 mil toneladas e este ano a colheita ficará entre mil e 1,5 mil toneladas.
A área plantada de nozes-pecãs no Brasil é da ordem de 10 mil hectares, sendo que 70% é em território gaúcho. A produção está distribuída em 215 municípios, somando 1,5 mil famílias dedicadas à produção, com grande concentração de pequenos e médios produtores, notadamente nos Vales dos rios Taquari e Rio Pardo, duas das principais regiões afetadas pelas cheias. A colheita envolve mais de mil pessoas, que sofrem com a interrupção na atividade, e que 81% dos pomares (175) tiveram reconhecidos seus estados de Calamidade (45) ou Emergência (130). Eles representam 89% da área total cultivada com nogueiras e 85% do total de produtores.
Com objetivo de quantificação das perdas, foi realizada pelo Instituto pesquisa entre seus associados. O resultado espelha uma perda econômica expressiva em toda a cadeia, seja na produção propriamente dita, seja na parte estrutural dos pomares, seja nos próprios ativos patrimoniais, seja nos processos de beneficiamento e comercialização. Além da perda de 80% da produção da safra de 2024, no caminho da destruição encontramos casas, galpões, estradas, infraestrutura de irrigação e áreas de produção ainda a serem colhidas. De acordo com os produtores, “não vale a pena colher”, “rompimento de barragem e casa das bombas”, “qualidade baixa das nozes”, “início da germinação dentro da casca”, “queda dos frutos prontos e perdas pelas enxurradas”, “depois das perdas com o excesso de chuvas na polinização, agora vem a chuvarada”. São os comentários.
A cultura já acumulava sucessão de efeitos provenientes de três anos de secas e excesso de chuvas no período da polinização, em setembro do ano passado. Os poucos momentos de frio no inverno de 2023 também prejudicaram o desenvolvimento vegetativo da pecã.
As indústrias também apresentaram suas perdas com custos adicionais pela interrupção das atividades. Também foram impactadas pela variabilidade na qualidade do produto recebido dos produtores, o que onera os custos de beneficiamento. Somam-se dificuldades logísticas acentuadas pelas perdas de pontes e estradas, com riscos à interrupção nos contratos com clientes nacionais e internacionais. Como se trata de um levantamento preliminar, estima-se que este impacto será de fato bem maior. À medida em que os prejuízos forem sendo consolidados, há também os intangíveis, como os danos à auto-estima do produtor e a sua motivação para continuar a produzir alimentos de qualidade. Além de contabilizar as perdas, o IBPecan elaborou um documento para ser entregue às autoridades, mostrando os danos para produtores e indústria e solicitando apoio para a reconstrução e retomada da atividade com valor estimado de mais de R$ 260 milhões. O instituto acrescenta que nos próximos anos serão necessários investimentos na ordem de R$ 1,2 bilhão para desenvolver o potencial produtivo da pecanicultura.
Os produtores de leite pedem socorro
Outro setor que já vinha bastante frágil é o de produção de leite. As chuvas agravaram a crise. Muitos produtores perderam todo o rebanho leiteiro e as estruturas na propriedade, sem falar nas mortes humanas que também aconteceram nas regiões produtivas. As chuvas persistentes e enchentes está causando desafios significativos em várias regiões do Rio Grande do Sul, afetando o desenvolvimento das pastagens e o bem-estar dos animais. De acordo com o Informativo Conjuntural da Emater/RS-Ascar, os problemas logísticos, como estradas intransitáveis e interrupções na coleta de leite, obrigaram os produtores a usar geradores para ordenha e resfriamento, aumentando os custos operacionais. A baixa oferta de alimentos e a qualidade do pastoreio também resultaram na redução da produção de leite em várias propriedades.
Na região de Bagé, a falta de energia elétrica tem prejudicado os produtores na campanha. O uso de geradores para resfriamento e ordenha implica em custos adicionais com combustível. A situação se agrava pela ausência de dias ensolarados, resultando em uma considerável redução na produção, que varia conforme a capacidade de suplementação de cada produtor.
Em Caxias do Sul, apesar do bom crescimento das forrageiras, o pastoreio foi prejudicado pelo solo encharcado e compactado, levando ao arranquio de plantas e deslizamentos de terra, com perda de pastagens e bloqueio de estradas. Em Erechim, os produtores enfrentam dificuldades para escoar a produção devido aos danos nas estradas, além de um aumento nos problemas de saúde animal, como mastite e lesões.
Na região de Frederico Westphalen, o retorno do sol e a melhoria das estradas permitiram a normalização da coleta de leite. Já em Ijuí, as obras de recuperação de estradas impedem o acesso a algumas propriedades, mas o volume total de leite coletado apresentou poucas perdas. A qualidade do leite estocado não foi comprometida devido ao rápido restabelecimento da trafegabilidade e às interrupções pontuais de energia.
Em Passo Fundo, os produtores relatam a necessidade de ajustar as dietas devido à insuficiência de alimentos a campo, afetando a produção de leite, especialmente em propriedades com baixo estoque de alimentos conservados. Em Pelotas, os alagamentos nas áreas de pastejo dificultam o acesso, exigindo o uso de geradores na ordenha e no resfriamento do leite, o que pode impactar na qualidade devido à falta de energia elétrica.
Em Rio Grande, estradas intransitáveis limitam a coleta de leite, resultando na queda da produção e da qualidade do leite devido ao alagamento das pastagens. Em Porto Alegre, as condições do rebanho são críticas, com relatos de perdas significativas por afogamento, especialmente nas regiões Metropolitana e Centro-Sul. A coleta de leite está comprometida em várias áreas, e a dificuldade de acesso às pastagens reduziu a produção.
Na região de Santa Maria, houve interrupção das linhas de coleta de leite, prejudicando os produtores. Em Santa Rosa, devido ao grande volume de chuvas, os produtores reduziram o tempo de pastoreio ou evitaram os piquetes de difícil acesso, aumentando o uso de silagem na dieta. A lama próximo às instalações exigiu cuidados extras na higiene da ordenha para manter a qualidade do leite. Em Soledade, muitas propriedades afetadas pelas enchentes estão recebendo doações de feno e pré-secado. Houve diversos relatos de atrasos na entrega de leite, mas a situação está gradualmente se normalizando.
Nesse momento, ainda há muita dificuldade de acesso a alimentos nas propriedades e existe a dependência de doações de feno, silagem e pré-secado para manter as vacas vivas. Produtores de leite enviaram um documento para autoridades pedindo medidas emergenciais. É o caso da Associação de Criadores de Gado Holandês do RS (Gadolando) que enviou um documento para autoridades pedindo medidas emergenciais, como juros mais baixos e prazos estendidos. Os custos para recuperar equipamentos, animais e lavouras perdidas são altos. Há temor de novas desistências da atividade. Somente no Vale do Taquari, a entidade estima que duas mil vacas morreram.
Tratar as vacas, produzir o leite, produzir o próprio alimento novamente, honrar compromissos já assumidos, tudo isso precisa ser revisto urgentemente. Levando-se em conta o custeio agrícola, uma anistia será preciso para algumas áreas afetadas severamente, analisando-se caso a caso. Praticamente todos os produtores foram afetados, em diferentes graus de severidade, e precisam ter anistia, abatimento ou prorrogação. Eles têm que começar a pagar este custeio e não possuem a mínima condição de efetuar estes pagamentos.
A tragédia climática que se abate sobre o Rio Grande do Sul penaliza pessoas e também animais. O rebanho bovino em território gaúcho é formado por mais de 11,9 milhões de cabeças que começam a padecer pela falta de alimento porque pastagens e instalações rurais foram destruídas pelas chuvas. Se essa situação não for revertida, poderá ocorrer mortandade de animais.
Para diminuir o sofrimento animal e impedir o agravamento da crise que se abate sobre o território gaúcho, a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Santa Catarina (FAESC) mobilizou os sindicatos rurais de todas as regiões do território barriga-verde para encaminhar dezenas de carretas com feno e pré-secado para nutrição do rebanho.
Atendendo pedido da direção da federação, os sindicatos aportaram R$ 183,4 mil para o pagamento do frete aos transportadores. Os caminhões são disponibilizados por empresários parceiros. A distribuição das doações recebidas pela FAESC obedece a orientação da Federação da Agricultura e Pecuária do Rio Grande do Sul (Farsul), que acompanha in loco o drama dos produtores rurais e indica as áreas em situação de extrema necessidade.
As ações para levar alimento ao rebanho bovino do Rio Grande do Sul não podem ser episódicas, mas devem se manter por certo período porque a situação não vai se resolver rapidamente. Planeja-se ações viáveis e, principalmente, sustentáveis com o engajamento de todos.
Do oeste catarinense já foram enviadas 40 cargas com feno e pré-secado para nutrição do rebanho, medicamentos, sementes de aveia e azevém em uma ampla ação envolvendo o apoio de produtores, transportadores, agropecuaristas, empresas e particulares. Foram mais de 1.500 bolas de pré-secado e 2.000 bolas e fardos de feno. A FAESC também enviou uma carreta carregada de leite longa vida e ainda enviará outra de maçã. A praticidade foi o motivo, porque são dois alimentos para consumo imediato que não exigem preparo prévio.
Técnicos ressaltam o custo elevado para a reconstrução das instalações destruídas pelas águas nas propriedades leiteiras. Com relação aos equipamentos em geral, desde ordenhadeiras, tanques, bombas, tratores, geradores e muitos outros utensílios fundamentais, alguns poderão ser reparados mas outros terão que ser adquiridos, não têm condições de recuperação. Será também necessário ressemear os pastos. A maioria dos produtores já havia gasto altos valores com a semeadura das pastagens de inverno. Tudo foi lavado. As sementes de azevém, aveia, etc, estão em um preço de difícil acesso para os produtores de leite.
A recuperação do solo é outro fator a ser considerado. As chuvas e correntes de água foram tão intensas que lavaram o solo fértil, portanto, a necessidade da recuperação. Caso não se recupere o solo, as próximas safras já estarão comprometidas. Outra demanda é de se manter a sanidade e o bem-estar do rebanho, a reprodução e a criação de terneiras. Tudo na propriedade leiteira é de médio a longo prazo. A terneira que nasce hoje, será a vaca daqui a dois anos. Este ciclo está ameaçado em muitas propriedades.
O setor leiteiro é o que mais mantém as pessoas na área rural, com um trabalho de 365 dias ao ano e, no mínimo, duas ordenhas diárias. O setor vem sofrendo há muito tempo com o clima que dificulta a produção de alimento, além do custo de produção elevado, concorrência desleal com o produto importado e trabalhando sem margem de lucro. Agora, com esta tragédia, ou socorre-se o setor ou a desistência será enorme e teremos uma conta conjunta socioeconômica caríssima a ser paga por toda a sociedade.
Apicultura
As chuvas no Rio Grande do Sul comprometeram as abelhas também, importantes para a polinização das lavouras e produção de mel. O estado é o maior produtor nacional com mais de 27 mil produtores espalhados por todas as regiões e apresenta um mel reconhecido pela sua pureza, extraído principalmente de floradas campestres e da mata nativa. Cerca de 10% da população de abelhas se perdeu com as enchentes, que destruíram 60 mil colmeias. De acordo com a Emater, existem 450 mil colmeias no estado. A previsão é de que sejam necessários até quatro anos pra recuperar a capacidade produtiva.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Rio Grande do Sul produziu 9 mil toneladas de mel em 2022, o que corresponde a 15% da produção nacional. Das pouco mais de 100 mil propriedades rurais que se dedicam à apicultura no país, 37 mil ficam no Estado. Outro ponto preocupante para os apicultores é a chegada do inverno. Sem alimentação necessária, as abelhas enfrentarão a estação fragilizadas, o que pode resultar em mais perdas. Apicultores já estão considerando que não haverá produção neste ano.
Alguns apicultores puderam acessar os apiários para manutenções e revisões. Em Dom Pedrito, alguns optaram por não colher o mel do outono, deixando-o acumulado para o consumo dos enxames. Entretanto, em Caxias do Sul, a postura das rainhas e a população de abelhas foram reduzidas, exigindo suplementação alimentar em muitos apiários. As chuvas deram uma trégua o que permitiu aos apicultores contabilizarem os prejuízos, incluindo perdas de colmeias devido aos ventos e ao arrastamento pelas águas.
Na região de Erechim, as condições climáticas desfavoráveis, com chuvas constantes e queda de temperatura, afetaram a atividade apícola, resultando em uma redução no movimento das abelhas e reservas de alimento insuficientes para enfrentar o outono/inverno. Em outras áreas, como Passo Fundo, Pelotas e Porto Alegre, o excesso de chuvas, umidade e redução de temperaturas têm mantido as abelhas dentro das colmeias, aumentando a dependência dos enxames por reservas internas acumuladas da safra anterior.
As cheias causaram enormes prejuízos aos apiários em Porto Alegre, resultando na perda de mais de mil colmeias. Em Santa Rosa, a demanda por produtos apícolas aumenta com a chegada do clima mais frio, enquanto em Soledade, apesar de aproximadamente três semanas de tempo seco, os enxames continuam prejudicados, reduzindo a colheita em fase final.
Avicultura
Os técnicos agropecuários divulgaram dados preliminares sobre os prejuízos enfrentados pelo setor devido. As informações revelam um cenário devastador para os produtores e indústrias do setor, com perdas totais podendo chegar a R$ 250 milhões. Ao todo, estima-se que 1,5 milhão de aves morreram.
Segundo a Associação Gaúcha de Avicultura (Asgav), os números podem subir consideravelmente por conta de indústrias afetadas em regiões de difícil acesso, cujos prejuízos ainda não foram computados. O Vale do Taquari, região central gaúcha, sofreu a terceira enchente em menos de seis meses e é a região mais afetada, sendo responsável por cerca de 20% da produção avícola do estado.
As perdas com aves poedeiras em consequência das enchentes ultrapassem R$ 3,5 milhões, com a morte de 150 mil aves. O estado está entre os grandes produtores de ovos do país. Granjas inteiras de poedeiras foram destruídas e as aves perdidas. Só numa granja, morreram 90 mil aves, algo nunca visto nos mais de 40 anos do estabelecimento. Antes das enchentes, essa granja produzia 1.100 caixas de 30 dúzias de ovos por semana e abastecia 37 cidades do Vale do Taquari. Nove aviários, que ficaram bem comprometidos, devem ser desativados e a produção vai seguir com menos aves. Também foram perdidas 40 toneladas de ração que estavam no silo e um pavilhão foi invadido por embalagens de ovos trazidas pela força das águas.
Talvez só a partir de julho essa granja terá o primeiro lote de frangas com 90 dias de idade para começar de novo. O custo para voltar a produzir como antes é o grande problema. O produtor, como muitos, está descapitalizado, e uma franga com 90 dias custa R$ 2. Até começar a por ovos, calcula-se ao redor de R$ 32. Se calcular 90 mil galinhas, vai precisar de uns R$ 3 milhões, no mínimo.
Segundo o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), o Rio Grande do Sul produziu no ano passado 198 milhões de dúzias de ovos, sendo o sétimo maior produtor do país. Em exportação, foram US$ 21 milhões em 2023, a maior receita entre os estados. A situação demanda atenção e ação rápida para que a avicultura gaúcha consiga se recuperar e continuar a garantir o fornecimento de produtos essenciais à mesa dos brasileiros, minimizando ao máximo os impactos dessa catástrofe.
Suinocultura
Produtores de suínos começam a calcular o tamanho das perdas e os números são alarmantes. Somente na suinocultura o prejuízo financeiro com estruturas de granjas e mortalidade de animais supera R$ 40 milhões, preliminarmente. Em torno de 12,6 mil suínos foram mortos pelas enchentes e deslizamentos que atingiram as granjas. Em instalações, que tiveram destruição total ou parcial, foram cerca de 26 mil m2 de área construída. Calcula-se que a reconstrução das granjas deverá custar mais de R$ 30 milhões à suinocultura gaúcha, considerando a despesa necessária para a montagem deste tipo de agroindústria.
Em animais, se considerar o valor do suíno vivo hoje, estamos falando em torno de R$ 12 milhões em perdas econômicas pela morte desses animais. Trata-se de um valor significativo para quem perdeu e foram os números confirmados junto às empresas integradoras da região, como JBS, BRF, cooperativa Dalia. Os números serão apresentados aos governos federal e estadual.
A Acsurs – Associação de Criadores de Suínos do Rio Grande do Sul afirma que as unidades frigoríficas de suínos paralisadas ou com atividade reduzida em função das chuvas voltarão a operar entre o final de maio até final de junho. Somente uma unidade da Dalia abate cerca de 2.000 suínos por dia. Ainda tem uma unidade da indústria de processados embutidos da Minuano paralisada em Arroio do Meio. O estado responde por 20% da produção nacional de carne suína, com aproximadamente 1 milhão de toneladas e 11,8 milhões de animais abatidos por ano. O valor bruto da produção de carne suína no estado é de 5,5 bilhões de reais.
Além do alagamento, outro problema é a dificuldade de acesso, causado pela destruição das estradas e deslizamentos de terras, o que impossibilita o abastecimento de rações e outros insumos essenciais a essas propriedades.De acordo com o Sindicato das Indústrias de Produtos Suínos do RS, somente o Vale do Taquari é responsável por 30% da produção no estado, conta com mais de 40 mil matrizes e cinco indústrias, que juntas abatem cerca de 1,3 milhão de animais por ano.
Pesca
Sem pescar nada há mais de um mês, com suas casas e peixarias inundadas e destruídas, vivendo de doações de cestas básicas e morando em embarcações ou de favor na casa de parentes e amigos enquanto esperam baixar a água da Lagoa dos Patos. Essa é a situação dos 900 pescadores artesanais da Colônia Z3, os mais atingidos pela inundação em Pelotas, no Rio Grande do Sul. A lagoa recebe a água da região central do Estado e da região metropolitana e subiu mais de dois metros desde o início de maio.
Além de ter acesso imediato aos auxílios emergenciais do governo do estado e do governo federal, no valor de R$ 2.500 e R$ 5.100, respectivamente, eles querem que o auxílio defeso, salário mínimo concedido pelo INSS de junho a setembro aos pescadores artesanais, quando a atividade fica proibida para reprodução dos peixes, seja estendido dois meses porque não haverá condições de pesca na lagoa por pelo menos seis meses.
Segundo o Sindicato dos Pescadores da Colônia Z3, na comunidade onde moram cerca de 4.900 pessoas, 60% delas vivendo da pesca, está ilhada desde 4 de maio quando as águas começaram a subir. O único acesso só permite a passagem de caminhões grandes, como os do Exército que leva as doações. A maioria dos pescadores da colônia tiveram que sair de casa. Tudo foi destruído. A água só não chegou em uma das sete ruas transversais da colônia, que fica mais no alto. Foram montadas barracas nessa área e muitos estão morando dentro das embarcações.
Enquanto a água da lagoa não ficar abaixo do nível do mar, não haverá peixes na região. O nível da cheia chegou a 2,36 m. Os pescadores calculam que, se parar de chover, serão necessários três ou quatro meses para a Lagoa dos Patos se estabilizar. Sem falar que só está descendo água podre, vermelha, cheia de lixo. Os técnicos da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) se assustaram com a aparência da água e pediram para ninguém ter contato. Até o momento não foi possível chegar aos locais de armazenamento dos equipamentos de pesca, aos galpões e às peixarias, na beira da lagoa.
A situação dos pescadores da colônia foi agravada porque neste ano não houve safra de camarão. Um ano sem pesca pois o camarão é o produto de maior valor comercial da colônia. A safra abriu em 1º de fevereiro, mas devido à chuva e inundação de novembro, o nível da lagoa ficou muito alto e as larvas do camarão não vieram para a lagoa no período. E a pesca da tainha também estava muito ruim nesse período.
Outras cinco comunidades pesqueiras de Pelotas também foram atingidas. Em duas delas, Pontal da Barra e Ponte de São Gonçalo, as 60 famílias tiveram que deixar suas casas. Outras colônias de pescadores de cidades da região da Lagoa dos Patos como São Lourenço, Rio Grande e São José do Norte também foram afetadas pelas enchentes e estão sem pesca e sem renda.
Estima-se que a situação de calamidade pública no estado impactou diretamente cerca de 20 mil famílias de pescadores. Toda a cadeia produtiva e de comercialização da pesca foi completamente impactada. Além de perderem suas casas e móveis, os pescadores estão ilhados e sem acesso à internet. Está sendo feito um mutirão de cadastramento para os auxílios, mas o temor dos pescadores é que não consigam cumprir os prazos para adesão.
A preocupação dos pescadores é impedir que aconteça novamente o que aconteceu em 2023 quando comunidades pesqueiras artesanais, mesmo com a existência de diversos documentos técnicos relatando os impactos na pesca, ficaram sem assistência por parte dos órgãos federais e estaduais responsáveis pela pesca. O governo federal irá se reunir com os pescadores na próxima semana para ouvir as demandas.
Como reconstruir, voltar à vida e não ser destruído novamente
Em oito meses, o Rio Grande do Sul foi fulminado três vezes pela crise climática. Nas últimas semanas, mais de 90% do território gaúcho submergiu sob a força das chuvas torrenciais. De 25 de abril a 14 de maio, o volume de chuva registrado foi até dez vezes superior à média histórica, segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
A população nem tinha conseguido se recompor da catástrofe de setembro e novembro de 2023, quando a maior enchente da história se abateu sobre o estado, arrastando o que tinha sido reconstruído e aprofundando estragos e destruição. Só na serra gaúcha, foram mais de 500 deslizamentos de terra em 24 horas.
Passado o pico da enchente que varreu o estado, os esforços se concentram em olhar por onde começar a reconstrução. No campo, os danos, ainda em fase de avaliação, afetam a produção de maneira generalizada como vimos anteriormente. Estudos em andamento tentam traçar um diagnóstico de primeiras ações. As análises citam que a retirada de lixo dos terrenos produtivos e a recuperação dos solos devem ser prioridade para que os agricultores retomem as suas atividades. Paralelo a isso, restabelecer serviços básicos em regiões que permanecem sem luz e água é fundamental, e o estabelecimento de acessos.
Com base em uma série de ações que já foram anunciadas pelo poder público e mapeadas pelo estudo, técnicos avaliam que faltam medidas voltadas especialmente aos pequenos produtores. Entre eles, os que já haviam sido prejudicados nos eventos climáticos anteriores de setembro e novembro. O que o pequeno tinha de reserva, ele usou naquele momento que perdeu. Hoje, ele já não tem por onde começar.
Em relação aos anúncios econômicos que estão sendo feitos, os especialistas sugerem medidas adicionais que prevejam, entre elas, a possibilidade de um programa de anistia em impostos anteriores, e não apenas uma postergação da dívida, reforçando a necessidade de suspensão de pagamentos e renegociação de operações de crédito rural. Algumas dessas ações já foram sinalizadas pelo BNDES, por exemplo.
Não só nas cidades, mas também nas áreas rurais, terá que ser pensada uma forma de realocação de residências e instalações agropecuárias para locais seguros, longe o suficiente da margens de rios e de encostas, locais mais apropriados que garantam a segurança tanto dos humanos quanto animais. Essa reconstrução precisa de um olhar abrangente, porque um desastre dessas proporções afeta de forma profunda as pessoas, gera um trauma. Não se trata apenas de um plano de reconstrução habitacional, mas de histórias e de vidas. Isso pode ser amenizado pela solidariedade que desperta, mas precisa ser tratado com uma política de cuidado, de atenção e compreensão aos sofrimentos que cada sujeito está vivenciando.
Reconstrução de forma inteligente
O que ocorre no Rio Grande do Sul nas últimas semanas não é inédito no Brasil. Em proporções, talvez. Mas, em 2011, um grande desastre deixou quase mil pessoas mortas na Região Serrana do Rio de Janeiro. Mais desastres aconteceram e novos desastres vão acontecer em algum momento.
Em termos de vítimas fatais, o maior desastre natural da história do Brasil ocorreu em janeiro de 2011, na Região Serrana do Rio de Janeiro, afetando cidades como Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis, São José do Vale do Rio Preto, Areal, Sumidouro e Bom Jardim. Na ocasião, 918 mortes foram confirmadas, mas estima-se que centenas tenham permanecido desaparecidas. Até o momento, as chuvas e enchentes no Rio Grande do Sul provocaram 169 mortes, mas a área impactada foi maior, uma vez que 467 municípios, de um total de 497, foram afetados de alguma forma pelas chuvas.
Há questões semelhantes e diversas entre os dois desastres. A primeira ponderação que se faz é a de que a culpa não é somente da chuva. As mudanças climáticas, os eventos extremos são responsáveis, sim, pelos problemas. Só que não é só isso.
As áreas urbanas e as rurais precisam ser melhor preparadas para receberem esses eventos extremos que, com as mudanças climáticas, acreditando ou não, se elas estão acontecendo, com interferência dos seres humanos ou não, elas vão acontecer. Essa dinâmica atmosférica vai fazer com que tenhamos essas situações extremas mais frequentemente e o problema é que a gente está agravando esses eventos. Eles se apresentam cada vez com maior magnitude e com menor intervalo de tempo. Essa chuva que acontece em Porto Alegre foi a maior já registrada. A chuva que aconteceu na bacia de Santos em fevereiro de 2023 foi a maior registrada dos últimos 25 anos. A chuva que aconteceu no último verão em Petrópolis foi a maior registrada nos últimos 15 anos. A culpa não é somente da chuva, a culpa também é da chuva.
Do ponto de vista do tipo de desastre, o maior problema enfrentado pela Região Serrana do Rio foi de escorregamentos e deslizamentos de terra, pelo fato da região ser escarpada. No Rio Grande do Sul tivemos problemas semelhantes seríssimo na serra, mas especialmente em Porto Alegre, os alagamentos e inundações causaram maiores impactos. Essa é uma diferença.
Os dois eventos, assim como a grande maioria de desastres naturais que ocorrem no Brasil, são agravados pela desordem urbana e pela falta ou mau planejamento urbano das cidades mas também das áreas rurais. Teoricamente, alguns lugares não deveriam ser ocupados, mas é um contexto social complicado a remoção pessoas de algum lugar, o que também não é viável num curto espaço de tempo.
Outra comparação entre os eventos do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro é a falta de investimento em prevenção. Tanto a Região Serrana do Rio de Janeiro, como no Rio Grande do Sul, existem obras já planejadas que não foram executadas. Se esses projetos tivessem sido implantados, certamente teria-se atenuado os problemas. Existem também, e principalmente, ações vinculadas à questão de proteção ambiental que não foram completamente adotadas na Região Serrana do RJ e nem no Rio Grande do Sul.
Planos de pré e pós desastres devem ser implementados. Com referência às medidas de pré desastre, destaca-se o que os técnicos chamam de gestão de riscos e desastres. De pós desastres, a gestão de crise. A gestão de risco de desastre compreende o planejamento, a coordenação e a execução de ações e medidas preventivas destinadas a reduzir os riscos de desastres e evitar a instalação de novos riscos. A gestão de crises é um plano estratégico sobre como os gestores públicos irão agir diante de alguma adversidade, quais as medidas que serão tomadas para minimizar os danos e restaurar o andamento normal dos negócios da forma mais rápida e eficiente possível.
Se analisarmos a história da enchente de 1941, que foi o grande evento que todos comparam com os dias de hoje, naquele momento tivemos 30% da área do estado atingida. Hoje, já passou de 90%. Só que, se pensarmos bem, as pessoas que estavam no Rio Grande do Sul daquela época teriam que ter mais de 90 anos para lembrar daquele evento. Mas, como afetou 30% da área, então muitas pessoas que têm mais de 90 anos nem foram atingidos naquela época. Quer dizer, a memória de cultura do risco é muito frágil. Então, as pessoas ainda continuam achando que não vai acontecer com elas. Só que pode ser que isso aconteça num prazo menor, porque os eventos estão ficando mais extremos e estão ficando mais frequentes.
Não há apenas uma solução que possa ser tomada para garantir a prevenção de desastres, mas que é preciso produzir um conjunto de soluções que permita dar uma resposta mais global para o problema. As condições de eventos estão chegando e estão encontrando uma desordem urbana e rural maior do que se tinha décadas atrás. Lembremos que são décadas de desmatamentos, de ocupação desordenada de margens de rios, de destruição de matas ciliares, de ocupações, tanto por construções quanto por infraestrutura de transportes, culturas agrícolas e criações, em áreas com grande declividade, queimadas, dentre outras agressões ao meio ambiente, como a flexibilização da legislação ambiental pelos negacionistas ambientais. Os avisos estão sendo dados há décadas mas eles continuam não ouvindo.
Repensar novas formas de ocupação do solo urbano e rural é fundamental para a prevenção de desastres naturais. Não tem outra forma. É preciso compreender que alguns espaços devem ser pensados para poderem ser alagados sem causar transtornos. Paralelo a essas ações, tem que se pensar em melhorias com obras de infraestrutura de contenção de encostas e drenagem, sistemas de bombeamentos inteligentes protegidos de enchentes, retificação e desassoreamento de rios e córregos, realocação das pessoas, alojamentos e sistemas de atendimento de saúde e emergência em locais seguros, estruturas e equipamentos de defesa civil, treinamento de pessoal para atuar em situação de desastres naturais, regeneração florestal de áreas degradadas, parques inteligentes, entre medidas de prevenção, como alarmes, comunicação prévia das condições climáticas, sistema de comunicação eficientes, radares meteorológicos, centros integrados de monitoramento das operações, etc. Uma engrenagem azeitada que envolve tecnologia e ciência.
O problema maior – Desmatamento
Um dos aspectos apontados por técnicos é o possível impacto da redução da vegetação nativa no estado. Dados do MapBiomas mostram que, entre 1985 e 2022, o Rio Grande do Sul perdeu aproximadamente 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa. Isso é o equivalente a 22% de toda cobertura vegetal original presente no estado em 1985 formada por florestas, campos, áreas pantanosas e outras formas de vegetação nativa. Os dados mostram ainda que ao mesmo tempo em que isso acontecia, houve um aumento vertiginoso de lavouras de soja, silvicultura e da área urbanizada do estado.
Por que os rios, córregos e canais estão assoreados? Porque o desmatamento nas cabeceiras desses cursos d’água e em suas margens continua sem qualquer controle. Os que ainda não aprenderam a fazer agricultura de forma técnica, correta, são os principais causadores dessa situação. Continuam desmatando matas ciliares, encostas íngremes, desrespeitando os preceitos técnicos para implantação de culturas agrícolas e pecuárias sem qualquer técnica de proteção ao solo, as famosas técnicas de conservação do solo (curvas de nível, terraços, barraginhas, cobertura morta, rotação de culturas, etc.). Sem esses cuidados não há como conter esses sedimentos e melhorar as capacidades, por exemplo, do manejo de água na agricultura.
Cientistas afirmam que a perda de cobertura vegetal original pode ter contribuído para as dimensões das inundações que afetaram o estado pois a vegetação nativa:
- diminui a velocidade com a qual a enxurrada chega ao leito dos rios;
- aumenta a quantidade de água infiltrada no solo, o que diminui a quantidade de água disponível para inundações;
- protege o solo diminuindo a quantidade de sedimentos que assoreiam os rios da região.
A relação entre a perda de vegetação nativa e os impactos das inundações no Rio Grande do Sul começou a ser feita por pesquisadores que estudam a ocupação do solo no estado gaúcho há décadas. O levantamento do MapBiomas tomou como ponto de partida o ano de 1985 porque é o primeiro ano da série histórica do conjunto de satélites Landsat, pois para estudar esse fenômeno, precisa-se de dados comparáveis de longo prazo.
Comparou-se as coberturas vegetais de diferentes categorias ao longo dos anos para estimar a quantidade de vegetação nativa perdida e o que ocupou o seu lugar no Rio Grande do Sul. A perda de vegetação nativa no Rio Grande do Sul atingiu o estado como um todo, mas quase um terço dela se deu na bacia hidrográfica do Guaíba, uma das mais afetadas. Nessa bacia, a perda de vegetação nativa foi de 1,3 milhão de hectares.
O Rio Grande do Sul tem algumas florestas nativas, mas a maior perda não se deu pelo desmatamento dessas florestas. Essa perda se deu, na maior parte, nas formações campestres. Essas formações são um tipo de vegetação adaptada ao clima sub-tropical composta, em sua maioria, por gramíneas e arbustos de pequeno porte. Em geral, ela vem sendo utilizada historicamente nas atividades de pecuária extensiva, preservando, segundo especialistas, suas características originais biológicas e suas funções ambientais em relação à chuva e ao solo.
De acordo com o MapBiomas, o estado perdeu 3,3 milhões de hectares em formações campestres entre 1985 e 2022, quase a totalidade de tudo o que o estado perdeu em vegetação nativa no período. Trata-se de uma perda de 32% em relação ao que havia desse tipo de vegetação em 1985.
O MapBiomas também mostra qual o destino dado às áreas onde a vegetação nativa foi suprimida, apontando que houve um crescimento de 366% no total da área destinada à lavoura de soja no período. Em 1985, o estado tinha uma área de 1,3 milhão de hectares ocupada pela soja. Em 2022, essa área saltou para 6,3 milhões. O crescimento foi de 4,99 milhões de hectares. Essa área é maior do que o total da perda de vegetação nativa porque, além de crescer sobre as áreas naturais, a soja também avançou sobre outras atividades como pastagens. De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), o Rio Grande do Sul era, em junho de 2023, o terceiro maior produtor de soja do Brasil, atrás de Paraná e Mato Grosso.
Outra atividade cuja área cresceu mudando a configuração do solo do Rio Grande do Sul é a silvicultura, a plantação de florestas novas ou no manejo de florestas nativas para a sua exploração comercial. No estado, a principal forma de silvicultura é a plantação de florestas novas de espécies como eucalipto, pinus e outras espécies que são usadas para a produção de madeira, lenha e celulose. A área destinada à silvicultura saltou de 79 mil hectares para 1,19 milhão de hectares, um crescimento de 1.399%. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Rio Grande do Sul é o quinto maior estado do Brasil em silvicultura, atrás de Paraná, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Minas Gerais.
O MapBiomas também mostra que houve um crescimento de 145% nas áreas urbanizadas do estado no período estudado. Em 1985, as áreas urbanizadas saíram de 97 mil hectares para 238.607 em 2022. De acordo com o IBGE, a população do estado era de 8,4 milhões em 1985. Em 2022, a população estimada era de 10,8 milhões.
A redução na área de vegetação nativa e sua substituição podem ter contribuído para o agravamento dos impactos das inundações. A mudança no uso da terra provavelmente aumentou o impacto negativo dessas chuvas. Há três motivos pelos quais isso aconteceria. O primeiro é que a vegetação nativa funcionaria como uma espécie de “freio” para a água da chuva.
A vegetação nativa nas margens dos córregos, riachos e rios cria mais obstáculos para a água da chuva em seu caminho até os leitos dos rios. Esses obstáculos diminuem a velocidade do escorrimento da água e reduzem a força com que ela chega às áreas mais baixas do território, como aquelas afetadas pelas enchentes. Mesmo após um rio transbordar, a vegetação nativa nas margens de um curso d’água funciona como um freio para a drenagem da água, diminuindo a velocidade com que ela atinge as áreas rio abaixo.
O segundo motivo é que a vegetação nativa funcionaria como uma espécie de “dreno” para parte da água da enxurrada. A vegetação nativa e suas raízes mantêm o solo mais permeável e assim ajudam a infiltrar a água da chuva no solo, reduzindo a quantidade que fluiria diretamente para os leitos dos rios. O terceiro motivo é o fato de que a vegetação nativa teria a capacidade de mitigar a erosão do solo e o assoreamento dos rios da região.
A supressão da vegetação nativa, sobretudo dos campos nativos nessa região, expõem o solo à erosão causadas pelas chuvas. Quando a chuva cai com intensidade, ela carrega uma enorme quantidade de terra pro leito dos rios. Isso causa o assoreamento, que diminui a profundidade do rio. Assim, fica mais fácil para haver uma inundação porque o rio comporta menos água. Observando-se as imagens de satélite, nota-se a cor barrenta das inundações. Tudo isso é sedimento carregado pela água de áreas rio acima.
Apesar de a soja cobrir o solo e consumir água durante o seu crescimento, ela não teria as mesmas condições de reter água e o solo durante as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul. O sistema de raízes da vegetação nativa é mais diverso quanto à sua capacidade de captação de água no solo, podendo fazer isso em diferentes profundidades.
Na cultura da soja, há etapas em que o solo está menos protegido, como o preparo do solo e na fase inicial de crescimento das plantas. Mesmo que haja palha sobre o solo, ela apenas favorece a infiltração de água, mas não a sua absorção. Um dos motivos por trás da redução na área de vegetação nativa e a sua transformação em lavouras de soja se deu, possivelmente, por conta do “boom” no preço das commodities, no início dos anos 2000. Como o Rio Grande do Sul tem solos de boa qualidade, férteis, bem drenados na parte norte, isso fez com que essa expansão se acelerasse nessa região. O preço teve um papel fundamental nessa aceleração.
Essa diminuição da área de vegetação nativa aconteceu também por conta de um histórico de permissividade de sucessivos governos estaduais. Em 2015, houve um decreto estadual que permitiu que pecuaristas cujas propriedades fossem em áreas de vegetação campestre pudessem declarar essas fazendas como áreas de uso consolidado. Isso reduziu uma série de exigências para o desmate dessa vegetação. Em 2019, essa mudança foi consolidada no Código Florestal Estadual. A perda de vegetação nativa no Rio Grande do Sul foi agravada por decisões políticas.
Esta perda das formações naturais foi acentuada, respaldada e incentivada por mudanças na legislação ambiental e também por procedimentos e decisões das gestões estaduais e municipais que dificultam a devida proteção da vegetação nativa e de áreas de grande interesse ecológico. O governo de Eduardo Leite (PSDB) alterou 480 normas ambientais desde que assumiu o comando do estado pela primeira vez, em 2019.
Uma das soluções para a reconstrução do estado está na regeneração da vegetação nativa que, além de dos benefícios ambientais, traria também ganhos econômicos. Quando as águas baixarem no Rio Grande do Sul, será hora do grande desafio da reconstrução, que deve levar em conta novos episódios climáticos extremos e medidas de adaptação. Entre as ações a serem tomadas, especialistas destacam a recuperação da vegetação nativa no estado. A cobertura verde serve como uma barreira natural contra inundações e enchentes, funcionando como uma esponja e permitindo que as águas se infiltrem no solo.
O que o Rio Grande do Sul e o Brasil precisa urgentemente fazer é mitigar as emissões dos gases que contribuem para o aquecimento global. E a principal tarefa a ser implementada é acabar com o desmatamento. Além disso, é fundamental a agenda de adaptação, que reconhece a gravidade e urgência do problema. As regiões de risco devem se adaptar para enfrentar esses eventos extremos. As soluções baseadas na natureza são as principais alternativas que existem, as mais baratas, mais eficientes, e entre elas está a restauração florestal, plantar floresta, plantar ecossistemas nativos e proteger os que já existem, para minimizar esses efeitos extremos dessas chuvas muito intensas.
As árvores, essas matas na beira do rio, são exatamente aquilo que se denomina de infraestrutura natural, ou seja, aquelas áreas que permitem a absorção da água para o interior do solo, tornando-se uma barreira natural ao avanço e ao espalhamento das águas. O que que aconteceu agora? Uma chuva diluvial, mas que não teve barreira nenhuma à sua expansão. Então, a questão de se plantar árvore, recuperar a vegetação nativa, precisa ser entendida como uma necessidade dos planos de reconstrução do estado.
Em todo o estado, são pelo menos 1,65 milhão de hectares em área de preservação permanente e reserva legal. Desse total de áreas, 510 mil hectares estão nas margens dos rios. A maior parte, 751,2 mil hectares, está no bioma do Pampa, enquanto 414 mil hectares são de regiões de Mata Atlântica. Recuperar essa vegetação nativa é importantíssimo, inclusive porque a agricultura do estado foi arrasada. Não é só a lavoura que foi destruída. Em muitas áreas, a camada que cobre o solo foi inteiramente retirada. Em alguns lugares só ficou pedra.
A recuperação dessas áreas permitirá a criação de 218 mil empregos, pois será preciso de muita gente para plantar a vegetação que foi destruída. Além disso, será preciso produzir as sementes e as mudas e isso é uma importante ferramenta de ajuda na recuperação econômica do estado, num momento que está com sua economia totalmente paralisada. A recuperação dessa vegetação depende de no mínimo três anos de intensa atividade, a partir do início do plantio. Os técnicos recomendam que se utilize o sistema agroflorestal, que conjuga o plantio das arvores com o cultivo de alimentos.
Esse enfrentamento do problema não pode ser encarado apenas no imediato, em curto prazo, uma vez que exige soluções que só podem ser implementadas ao longo de várias décadas, o que exige uma política permanente, com continuidade para além de mandatos de prefeitos, governadores e presidente. Isso é coisa de décadas.
O processo de reconstrução do estado exige que a ocupação dos municípios ocorra de forma diferente do que se fez esse tempo todo. Tem que ser de forma inteligente, com ciência, tecnologia e saberes comunitários locais. Um mapeamento imediato das áreas atingidas é fundamental para o estabelecimento desse plano de reconstrução e ocupação. Essas áreas atingidas são as que tem que ser liberadas imediatamente da ocupação humana e reconstituídas com bosques, parques e áreas tampões. Isso tudo feito dentro de um planejamento gradual porém o mais rápido possível. É um momento de se repensar as cidades, as áreas rurais e as áreas de preservação. Pensar em áreas ocupadas sustentáveis em termos de uso dos recursos, de matas, de vegetação, de agricultura, de recursos hídricos, resilientes, que a partir do evento extremo consegue dar uma resposta rápida e voltar às operações muito rapidamente.
O Rio Grande do Sul e o Brasil estão tendo uma nova chance de reconstruir suas cidades e suas áreas de produção agropecuária de uma forma melhor do que elas estão hoje implantadas. De uma forma inteligente, sustentável, mais resiliente, para que realmente se minimize ao máximo os impactos que possam acontecer ao longo dos próximos anos, que certamente irão acontecer. Caminhos melhores e mais seguros estão ao alcance dos tomadores de decisão. Diferentes universidades e centenas ou milhares de cientistas, além de muitas tecnologias estão à disposição, prontos para serem mobilizados.
Não podemos seguir repetindo o mesmo tipo de infraestrutura e modelo produtivo como se estivéssemos vivenciando algo único, que jamais se repetirá. Todos os alertas foram dados: eventos climáticos extremos ocorrerão com maior intensidade e frequência.
Prevenir sai 15 vezes mais barato que remediar
Um levantamento feito pelo Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres (UNDRR) concluiu que para cada dólar investido na redução e prevenção de riscos, pode-se poupar até 15 dólares na recuperação pós-desastre. Cada dólar investido em tornar as infraestruturas resistentes a catástrofes poupa quatro dólares em reconstrução. A organização salienta que benefícios econômicos, em termos de custos do investimento na prevenção e na resiliência, são claros.
E, no Rio Grande do Sul, o valor do orçamento para a Defesa Civil é de apenas R$ 0,70 por habitante. Os dados estão na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2024. Do total de mais de mais de R$ 80 bilhões do orçamento, foram destinados equivalente só 0,009% da receita total do estado para questões climáticas. O governador reconhece que sabia dos alertas de cheias, mas não investiu mais porque tinha a agenda fiscal como prioridade.
Ou seja, se tivesse investido em prevenção, poderia ter economizado 14 vezes mais em relação aos valores necessários agora na recuperação e, acima de tudo, teria poupado muitas vidas, dor e sofrimento. É relevante uma política baseada no cuidado da pessoa afetada pelo desastre, mas também se deve incluir a compreensão do evento climático a fim de mudar a consciência e o comportamento. Além disso, o entendimento de, como a ocupação do solo, as matrizes econômicas e a cultura do consumo são as causas das alterações climáticas, é fundamental. A lição já aprendida é que, se nos colocarmos em guerra contra rios, ventos, oceano, relevo, vamos perder sempre. O negacionismo científico e político atrapalham o nível de conscientização em relação à preservação do meio ambiente e precisam ser combatidos.
Programa de recuperação da fertilidade do solo é fundamental
A recuperação de solos atingidos pelas enxurradas será certamente o principal desafio da agricultura. Para atender aos produtores rurais afetados pelos eventos adversos do ano passado (setembro e novembro), a Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR) lançou o Programa de Recuperação da Fertilidade do Solo. Esse programa agora deverá ser reforçado, e muito reforçado, para atender a toda extensão das áreas agrícolas atingidas pelas enxurradas e deslizamentos no estado. Isso, aquelas que ainda podem ser recuperadas, pois muitas áreas tiveram toda a camada de solo fértil arrancada, ficando na rocha. Isso significa que os próximos anos serão de recuperação dos solos agrícolas, porque a perda não foi só de estrutura de solo, mas também de fertilizantes e de corretivos, carregados pelas águas da enchente, pelas águas das enxurradas e pelo escoamento superficial.
Em todo o estado, em grande parte dos municípios, ocorreram processos erosivos, desde os mais aprofundados, com o total carregamento das camadas aráveis até os processos erosivos que carregam a fertilidade, que carregam os fertilizantes. Os solos foram severamente afetados. Isto requer uma atenção muito grande, um trabalho muito grande para recomposição.
Em relação ao futuro plantio de grãos nas áreas em que a camada de cultivo, de 30 a 50 cm de profundidade, foi levada pelos rios, o trabalho de recuperação precisará incluir o plantio de árvores e espécies de cobertura mais rústicas ou pastagens de baixa exigência nutricional, para gradativamente introduzir a pecuária e então recuperar um pouco da capacidade produtiva original. Levará anos para recuperar a fertilidade natural. Não será de uma hora para outra.
O solo é a maior riqueza do produtor rural. É a memória do sistema de produção agropecuária, que registra tudo que o produtor vem fazendo ao longo dos anos na construção da sua fertilidade, na construção de uma camada fértil para que ali as culturas e as criações possam desempenhar o seu potencial genético. O horizonte ou as porções mais férteis do solo são justamente essas da camada mais superficial. São as porções onde se trabalha mais ativamente o solo e a fertilidade. É justamente essa camada que, em muitas regiões, foi perdida.
Existem algumas técnicas que aceleram o processo de recuperação destes solos, tais como o plantio direto, pois esta prática se estimula o solo a trabalhar de forma contínua e protegida, criando um ambiente propício para a ciclagem de nutrientes e o desenvolvimento de microrganismos benéficos. A diversificação de culturas também é uma excelente ferramenta nesse momento, inclusive para melhorar a diversidade do solo e manter a saúde do ecossistema agrícola, além de ser uma estratégia para trazer nutrientes ao solo. Pode-se utilizar espécies que têm como característica a chamada adubação verde, acrescentando, ainda, como terceira prática para aceleração da recuperação das áreas degradadas a aplicação de ferramentas de agricultura de precisão (como aplicação de fertilizantes à taxa variável), visto que as enxurradas podem resultar na formação de manchas de fertilidade ao longo das áreas.
O que está se vendo em muitas propriedades rurais gaúchas é a perda de toda a camada superficial do solo, que é justamente a mais fértil, construída ao longo de anos em áreas historicamente utilizadas por agricultores e pecuaristas para a obtenção de seu ganha-pão. O solo fértil é algo que se constrói ao longo de anos de muito trabalho e bom manejo, especialmente na condição de clima subtropical do estado, em que a fertilidade de um solo está diretamente relacionada ao teor de matéria orgânica. Ou, em outras palavras, relacionada à vida do solo. Assim como a água levou a casa de muitas pessoas, também levou a casa de uma infinidade de organismos responsáveis por promover a fertilidade desses nossos, que são a base da produção agropecuária gaúcha.
Esse processo de recuperação deverá ser realizado com um novo olhar para a agricultura e a pecuária, com a implementação de manejos que são capazes de regenerar a fertilidade do solo em um menor espaço de tempo, como é o caso dos sistemas integrados de produção e dos sistemas agroflorestais, sempre baseados em práticas conservacionistas de manejo do solo. Esses dois sistemas, os sistemas integrados e os sistemas agroflorestais, já vêm sendo estudados há muito tempo e se caracterizam justamente por promover uma maior biodiversidade do sistema produtivo, tanto acima quanto abaixo da superfície do solo. Isso é resultado de muitos anos de pesquisas, que comprovam que tais práticas resultam em altas produtividades primárias, ou seja, uma maior produtividade do produto agrícola que gera o retorno econômico, que é de interesse direto do produtor rural, e também algo que é de interesse da sociedade como um todo, que é uma prestação muito maior de funções do solo, mitigando a severidade de eventos climáticos extremos.
É urgentemente necessário que se tenha mais árvores nas lavouras e pastagens do Rio Grande do Sul. As raízes, especialmente as das árvores, auxiliam os solos a terem uma maior taxa de infiltração de água e, consequentemente, menos água e menos solo chegarão ao leito do rio em um evento de chuva extrema. Em contrapartida, em anos de estiagem, essa água armazenada nas camadas mais profundas do solo pode ser redistribuída para camadas superficiais do solo por essas árvores, e assim ser disponibilizada para os cultivos anuais de lavoura e pastagem, que possuem raízes menos profundas.
O solo é a base de qualquer sistema e para isso existem três pilares: o pilar químico, o físico e o biológico. É preciso um equilíbrio entre eles para manter os próprios microrganismos do solo. O que ocorreu com esse excesso de chuva, especialmente num período de colheita? Muitos solos estavam descobertos ou sem uma planta de cobertura, e com isso a energia cinética da gota da chuva atinge diretamente o solo, salpicando e levando pequenos agregados que acabam selando os poros superficiais, por onde a água deveria infiltrar. Portanto, houve muita perda por erosão, com o solo sendo deslocado pela água devido à falta de uma estrutura de macroporos, responsáveis pela taxa de infiltração de água no solo, ou por falta de cobertura.
Em algumas áreas já se havia implantado algumas culturas nas quais observou-se que todo o sistema radicular conseguiu manter os agregados e a parte orgânica, que é a parte mais especial e rica do solo, evitando a perda. Por isso a importância de sempre ter alguma planta ocupando o solo, sem deixá-lo exposto ao sol. Isso também impede que a gota da chuva incida diretamente no solo, quebrando sua energia na massa da folha da planta que o cobre. Isso nos leva a refletir sobre a necessidade de um plantio direto bem feito. Ainda se observa no estado muitas áreas onde se realiza o manejo mecânico do solo, o que é muito prejudicial. Observa-se muitas lavouras perdendo grandes quantidades de solo devido a esse manejo mecânico. Portanto, é importante fazer essa mistura de plantas, mantendo o solo coberto o máximo de tempo possível, para obter uma melhor taxa de infiltração e menos perda por erosão.
O programa de recuperação deverá prever a contratação de horas-máquina e a aquisição, distribuição e aplicação de insumos, tais como corretivos, condicionadores de solo, adubos, bioinsumos e sementes de cobertura. As principais ações do programa deverão estar sustentadas em cinco pilares:
- Disponibilidade de horas-máquina e insumos, tais como corretivos, condicionadores de solo, adubos e sementes de cobertura para a reconstituição da fertilidade do solo;
- Incentivo à recomposição de áreas de matas ciliares que colaborem para evitar prejuízos em eventos futuros de semelhantes características, como recomposição florestal de áreas que sofreram com deslizamentos;
- Contribuição para elevar e recompor a produtividade das áreas degradadas;
- Colaboração para a melhoria da renda obtida pelos agricultores familiares atingidos;
- Implantação de tecnologias de conservação do solo tais como, curvas de nível, terraceamento, barraginhas, camalhões, etc.
A infraestrutura
A avaliação até o momento vem ao encontro do que se ouve junto às famílias rurais atingidas. Trata-se de prioridade as melhorias dos acessos e o levantamento de todos os estragos, tanto nas lavouras, quanto nas estruturas das propriedades, incluindo aí as residências rurais. As estradas particulares também tem que entrar no escopo de atuação.
Não se deve imaginar que tudo será reconstruído, resolvido unicamente com tecnologia, engenharia. É importante lembrar que tudo deverá ser reconstruído respeitando-se a natureza. Isso é respeitar os lugares onde não podem ser ocupados, áreas de preservação. Essa reconstrução exigirá planejamento e definição de prioridades por parte dos órgãos públicos. A curto e médio prazo, o governo deve centrar seus esforços na construção de moradias e na recuperação de rodovias e pontes, afetadas pela tragédia climática, além de restabelecimento energia elétrica, telecomunicações e abastecimento de água potável.
A partir de então, o foco deverá ser direcionado aos equipamentos públicos de saúde e educação nas áreas rurais. Um plano de trabalho deverá ser dividido em três etapas:
- emergencial/curto prazo (focado em assistência social, segurança);
- reconstrução/médio prazo (habitação e infraestrutura);
- futuro/longo prazo (fortalecer a resiliência a eventos climáticos).
Recuperar as redes de rodovias (regionais, estaduais e federais), assim como pontes e cabeceiras, significa a ligação entre os territórios. É um primeiro passo para recompor o sistema de circulação das pessoas e de mercadorias. É crucial manter as rotas desobstruídas para garantir o acesso aos serviços essenciais e facilitar o transporte de ajuda humanitária.
A questão habitacional é muito dramática. Há municípios no Vale do Taquari, como Muçum e Roca Sales, que se desenvolveram em áreas de encostas. Cidades como Santa Tereza em que parte das casas estão em áreas de inundações. Será preciso reconstruir tudo isso com segurança. O governo federal irá comprar junto ao setor privado os imóveis em áreas urbanas já concluídos ou que ficarão prontos até o final de 2025 — cerca de 5.000 unidades. Outra medida na área de habitação foi o Vale Reconstrução, um pagamento único de R$ 5.100 a famílias que perderam seus bens na catástrofe.
A política habitacional no país não é tão azeitada como a de educação e saúde. Será necessário fortes investimentos para moradias em locais seguros, pois certamente ocorrerão novas inundações e deslizamentos. O processo de reconstrução também será uma oportunidade para reformular todo o sistema de drenagem, combinando com outras obras como os jardins de chuva, recuperar matas cilicares. É a oportunidade para que as comunidades se adaptem aos impactos climáticos, como o aumento na intensidade de chuvas e as ondas de calor. É preciso dar ênfase na prevenção para se ter a garantia de toda essa recuperação. Caso contrário, é como construir castelo na areia.
É a oportunidade também para a elaboração de novas soluções e e políticas públicas. Por meio de planos de contingência, mapeamento de áreas de risco geológico e hidrogeológico e implementação de sistemas de alerta, como radares e sirenes, para orientar as populações vulneráveis, juntamente com o uso de tecnologias para monitoramento de rios e cursos d’água, é possível prevenir os desastres climáticos. Os planos diretores dos municípios também deverão ser revistos e atualizados. É fundamental que as autoridades governamentais estabeleçam um diálogo contínuo com especialistas. Esse intercâmbio é imprescindível para identificar os elementos naturais e as atividades humanas que contribuem para enchentes e deslizamentos de encostas. É fundamental a criação e capacitação de equipes técnicas multidisciplinares permanentes nos órgãos governamentais e na Defesa Civil do estado e de municípios. Cumpre destacar que a engenharia (nas suas diversas áreas) e a geologia têm que se tornar carreiras de estado nos departamentos de Defesa Civil e secretarias, caso o estado e municípios pretendam desenvolver de forma técnica ações de prevenção e gestão de risco. Em caso de ocorrência de desastres, as equipes técnicas devidamente capacitadas são essenciais para uma resposta rápida e assertiva.
Ao identificar áreas que podem ser afetadas por inundações, é possível realizar o planejamento da região, visando a não ocupação de áreas com alto risco, a realocação de pessoas que estejam vivendo em áreas de risco e medidas que possam reduzir o risco, além de criar protocolos de ação e auxiliar a educar a população para saber lidar com o risco, buscando assim ampliar a capacidade de resiliência da população.
Outro setor importante que não poderá ficar de fora é o de fiscalização. Os órgãos de gestão ambiental têm que ser repensados e necessitarão de investimentos para estrutura e pessoal também. A intensificação das operações de fiscalização e conscientização no sentido de coibir ocupações irregulares e também para evitar ou amenizar o resultado das ações antrópicas, como exploração de recursos naturais e destruição de habitats naturais é fundamental para se prevenir de problemas como os que o Rio Grande do Sul está enfrentando atualmente. Para mitigar esses impactos, é fundamental adotar práticas mais sustentáveis e conscientes, equilibrando o desenvolvimento com a preservação ambiental.
Por ser um profissional de visão holística, o engenheiro ambiental é capaz de se integrar a outros profissionais responsáveis pelo planejamento territorial e propor medidas adequadas, eficientes e eficazes para enfrentamento de danos provocados por eventos climáticos. Por isso, é importante a participação desse profissional nos quadros das prefeituras e governos estaduais, pois tem a habilidade para elaborar plano de contingência municipal, auxiliar o chefe do executivo em situação de emergência ou calamidade pública. A redução do impacto de eventos climáticos hidrogeológicos passa por ações integradas de proteção das Áreas de Preservação Permanente, educação ambiental, coleta e tratamento de resíduos sólidos e ordenamento territorial urbano e rural, por exemplo.
A integração de engenheiros de avaliações e peritos de engenharia nas equipes também é essencial, pois contribuem para elaboração e implementação de políticas e regulamentações que promovem a ocupação segura de áreas e o desenvolvimento de infraestruturas resilientes, tanto nas cidades quanto nas áreas rurais dos municípios. Esses profissionais são capazes de realizar diagnósticos detalhados, elaborar planos de ação e realizar inspeções periódicas em edificações. Essas inspeções permitem identificar anomalias e falhas de manutenção, priorizando recursos para ações preventivas e corretivas. Também é crucial direcionar recursos para sistemas não visíveis, como redes subterrâneas de esgoto e água potável, casas de bombas para controle de enchentes e comportas para regular o fluxo de água em rios e canais. Além disso, os engenheiros desempenham um papel crucial no desenvolvimento de sistemas de monitoramento e alerta precoce, incluindo estações meteorológicas automatizadas, sistemas de detecção de incêndios e monitoramento de barragens.
O investimento nos órgãos de extensão rural será fundamental nessa retomada, tanto em estrutura quanto em pessoal, facilitando com que as tecnologias cheguem na ponta e o produtor rural possa trabalhar de forma a mirar e atender a sustentabilidade. Investir em mudança de consciência vai ser fundamental. Será necessário conhecer e monitorar todo o território para se alinhar continuamente atividades agrícolas sustentáveis e regenerativas para produção de alimentos saudáveis, sobretudo nas bacias hidrográficas, associada à preservação dos recursos naturais como água e solo. Dessa forma se contribui cada vez mais para a qualidade dos serviços ecossistêmicos, especialmente na manutenção do estoque de carbono e promoção de matéria orgânica no solo por exemplo, o que resulta em maior produção de alimentos e consequentemente, se bem distribuídos, em mais qualidade de vida para todos.
Os engenheiros de segurança também colaboraram com a Defesa Civil na elaboração de planos de emergência e abandono para retirar populações de áreas de modo organizado, classificando vias e rotas para que as pessoas possam se dirigir para estabelecimentos preparados com dispositivos e materiais para recebê-las em casos de calamidades. Eles trabalham para evitar que sistemas possam entrar em colapso e aumentar ainda mais a proporção de acidentes. Os engenheiros de segurança são os profissionais da prevenção e estão atentos às questões que envolvem riscos não somente para trabalhadores, mas para a população em geral.
O contato permanente com o sistema nacional ou regional de meteorologia é muito importante para toda a equipe de Defesa Civil. A coleta constante de informações permite a elaboração de um projeto de enfrentamento. O profissional habilitado informa a previsão e um bom tomador de decisão e sua equipe de gestão conseguem trabalhar. O risco do agronegócio à condição climática, por exemplo, é uma informação fundamental. O prognóstico climático salva a produção e previne a quebra de safra, como também previne problemas com desastres naturais.
O desastre climático no Rio Grande do Sul deverá demandar ao menos uma década para a reconstrução da infraestrutura local. Os cálculos sobre o custo dessa reconstrução ainda são incertos, mas são recursos que necessariamente terão que ser alocados, independentemente da situação fiscal. Não há o que fazer. Os mais céticos em relação a questões fiscais sabem que esses recursos efetivamente vão ter que ser gastos. Tem-se que ter a consciência que esse é um problema grave que vai trazer sequelas e vai exigir recursos. Além disso, os investimentos também trarão uma renovação da infraestrutura local e deverão gerar demanda para a indústria e para a cadeia de fornecedores como um todo. A tarefa, de fato, é monumental, considerando o trágico cenário vivido pela maioria dos municípios gaúchos. Cidades inteiras foram destruídas ou seriamente prejudicadas.
Ouvir os prefeitos, vice-prefeitos, políticos locais, técnicos e líderes comunitários será fundamental, pois são eles que estão perto do problema, recebendo as demandas de suas comunidades. A reconstrução vai precisar muito de ajuda técnica especializada, como a de engenheiros, agrônomos e geólogos.
Saúde mental
Os desastres naturais trazem destruição e desolação, afetando não só o ambiente físico, mas também a saúde mental das pessoas. A perda de entes queridos, bens materiais e até mesmo a estabilidade emocional são desafios imensos que exigem um olhar cuidadoso e compreensivo. Diante de tragédias, o sentimento de impotência é comum e compreensível. São eventos traumáticos que podem deixar cicatrizes profundas na psique das pessoas afetadas. Além disso, a exposição a condições insalubres durante as enchentes, como a água contaminada, o risco de doenças e a falta de saneamento básico, pode agravar ainda mais os problemas de saúde mental. O trauma, o estresse e a incerteza podem desencadear uma crise de saúde mental que muitas vezes passa despercebida, mas que precisa ser abordada com urgência.
Nesse processo de reconstrução, o auxílio psicológico será vital. Mesmo para quem não perdeu, tem alguma parte de si que está sofrendo. Agora as pessoas precisam viver o luto das suas perdas, para que voltem mais fortes, para que voltem completas de suas experiências. Perder tudo é uma situação dificílima. Pessoas que voltaram à suas propriedades pela primeira vez recordam que ali trabalhavam com suas lavouras, seus animais, tinham amigos, festejavam, se reuniam nos finais de semana, conviviam com seus familiares. Choram vendo a escola do lugar, que era muito bonita. A casa é o teto do afeto, você perde o vizinho, o caminho do dia a dia. Nada disso mais tem.
A desesperança é grande no Vale do Taquari. Pode-se dizer que está todo mundo sem ânimo para se reerguer, depois que aconteceu e está acontecendo. Muitos que sobreviveram estão indo embora. Só não tem mais gente saindo porque as estradas de acesso ainda estão destruídas. Muitos já decidiram que vão de mudar para um lugar seguro para criar os filhos. Na região de Santa Cruz do Sul, em torno de 300 famílias de pequenos agricultores perderam tudo e estão alojadas nos pavilhões das igrejas e abrigos mantidos pelas prefeituras. A tragédia é muito grande e as pessoas estão sem rumo.
Ainda não há um levantamento do número de agricultores atingidos pelas chuvas, uma vez que muitas localidades estão sem acesso, com estradas totalmente danificadas. Entre as regiões mais atingidas estão o Vale do Rio Pardo (onde está localizada Santa Cruz do Sul) e o Vale do Taquari (Cruzeiro do Sul). A situação é caótica em todo o Rio Grande do Sul, mas nessas regiões já foram mais de três enchentes seguidas. As ações emergenciais nos municípios, com muita dificuldade, dão conta de oferecer abrigo, comida, roupa e atendimento à saúde física e mental dos desabrigados. Muitos perderam familiares e amigos.
Todos estão preocupados com o depois. Como realocar tantas famílias que precisam de terra? Boa parte das famílias de pequenos agricultores da região do Vale do Rio Pardo atua com produção de tabaco e hortaliças. Já no Vale do Taquari há muitos que se dedicam à produção de arroz, hortaliças e criação de animais ao ar livre e integrados à agroindústria, principalmente de frangos e suínos. A maioria das famílias dessas regiões são fornecedoras das feiras livres. Nas áreas rurais dos municípios da região metropolitana de Porto Alegre, pequenos agricultores também foram fortemente atingidos.
Juntamente com a Cáritas Brasileira e outros movimentos sociais, a Pastoral da Terra está organizando equipes para visitar os agricultores atingidos, assim que as águas baixarem, para ouvir, dar um abraço solidário e entregar kits de sementes para as famílias reiniciarem suas plantações.
No contexto das graves enchentes que assolam o Rio Grande do Sul, a atenção à saúde mental se torna uma prioridade crucial para mitigar os efeitos psicológicos adversos e promover a resiliência nas populações atingidas. É inegável que as enchentes geram um cenário de caos, incerteza e estresse para as pessoas afetadas. O medo, a ansiedade, a tristeza e a sensação de perda são sentimentos comuns nesse contexto, podendo desencadear transtornos mentais como o estresse pós-traumático, a depressão e a ansiedade generalizada. Portanto, é fundamental oferecer suporte psicológico e emocional para ajudar na recuperação e no enfrentamento dos desafios psicológicos decorrentes do desastre.
A atenção à saúde mental durante e após as enchentes deve abranger diversas frentes de atuação. Primeiramente, é essencial disponibilizar apoio psicológico imediato às vítimas, por meio de equipes de profissionais especializados em intervenção em crises. Esse suporte pode ser oferecido em abrigos temporários, postos de atendimento ou até mesmo por meio de teleatendimento para alcançar um maior número de pessoas.
Além disso, é necessário promover ações de conscientização sobre saúde mental nas comunidades afetadas, visando reduzir o estigma associado aos transtornos mentais e encorajando as pessoas a buscar ajuda quando necessário. A informação e o acesso a recursos de apoio psicológico são fundamentais para que as pessoas se sintam amparadas e compreendidas em meio à adversidade.
Outro ponto crucial é o investimento em programas de longo prazo voltados para a reconstrução psicossocial das comunidades impactadas. Isso inclui a implementação de grupos de apoio, atividades terapêuticas e estratégias de fortalecimento da resiliência coletiva. Dessa forma, é possível contribuir para a recuperação emocional das pessoas afetadas e promover um ambiente mais saudável e solidário.
O sistema de saúde, já sobrecarregado, muitas vezes não está preparado para lidar com a demanda adicional de atendimento psicológico e psiquiátrico necessários nessas situações. Os profissionais de saúde mental, por sua vez, enfrentam uma carga de trabalho excessiva e podem não ter a capacidade de atender a todos que precisam de ajuda. Além disso, a estigmatização em torno das questões de saúde mental ainda é um obstáculo significativo, impedindo que muitas pessoas busquem o apoio de que precisam.
Para enfrentar esse desafio oculto das tragédias, é fundamental que o poder público e a sociedade como um todo reconheçam a importância da saúde mental e implementem medidas eficazes de prevenção e suporte. Primeiramente, é necessário investir em programas de preparação e resiliência, que ajudem as comunidades a se prepararem para os acidentes naturais e a lidar com as consequências emocionais. Isso inclui a criação de planos de evacuação claros, a melhoria da infraestrutura de abrigos temporários e a promoção de treinamentos em primeiros socorros psicológicos.
Além disso, é fundamental fortalecer o sistema de saúde mental, garantindo que haja profissionais capacitados e recursos adequados disponíveis para atender às necessidades da população. Isso envolve a contratação de mais psicólogos e psiquiatras, a expansão dos serviços de saúde mental nas áreas afetadas e a implementação de programas de apoio psicossocial de longo prazo para as vítimas.
Em suma, diante dos graves acontecimentos, é imprescindível reconhecer e priorizar a importância da saúde mental no processo de recuperação das comunidades atingidas. O cuidado com a saúde emocional das pessoas afetadas deve ser uma preocupação central, com medidas efetivas voltadas para o suporte psicológico imediato e para a promoção do bem-estar mental a longo prazo. É crucial combater a estigmatização em relação à saúde mental e promover a conscientização sobre a importância do cuidado emocional em situações de desastre. Campanhas de informação e educação podem ajudar a desmistificar os problemas de saúde mental, encorajando as pessoas a buscar ajuda quando necessário e a oferecer apoio uns aos outros. Esse evento trágico no Rio Grande do Sul é um lembrete doloroso dos desafios que a natureza pode impor e da resiliência do povo gaúcho.
As reivindicações
O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) também atua junto aos produtores afetados pelas chuvas no Rio Grande do Sul. Estima-se que 90% dos agricultores dos vales do Rio Pardo e do Taquari foram atingidos. O movimento organizou uma pauta de reivindicações para apresentar ao governo federal para ajuda aos produtores, pois sem isso eles não terão como começar do zero de novo. O documento propõe medidas de reestruturação da base produtiva, ações estratégicas e de solidariedade. Foram perdas enormes, e há regiões em que toda a produção camponesa do pequeno agricultor foi devastada pela enchente.
Entre as medidas da pauta estão a renegociação de dívidas, liberação de um salário mínimo durante 12 meses para subsistência familiar, linha de crédito para reestruturação das atividades agrícolas nas propriedades, assistência técnica e ampliação do acesso das famílias ao Programa Fomento Rural do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).
A implantação de cozinhas solidárias nos municípios atingidos e de um plano nacional focado no abastecimento de alimentos saudáveis, com base na agroecologia, também é reivindicada. Além das perdas nas propriedades, a falta de energia elétrica e de acesso a inúmeras localidades torna a situação ainda mais precária. Cultivos de folhosas e tomates foram totalmente destruídos. O desespero é total. São cenas nunca vistas e vividas antes e não sabe como lidar. Os pequenos agricultores produzem o alimento para a mesa das pessoas agora estão com medo de passar fome.
Estamos vivendo o que foi previsto há 30 anos
A recente onda de desastres climáticos, como as intensas chuvas no Rio Grande do Sul e a falta de precipitação no Centro-Oeste, evidenciam um problema que vem sendo anunciado há décadas. Estamos vivendo um momento que foi previsto há 20, 30 anos atrás, que à medida que houvesse um aumento na temperatura média do planeta, todos os fenômenos climáticos iam ser amplificados. As secas seriam mais intensas, ondas de calor de temperatura mais elevada e chuvas como estão ocorrendo agora.
O ano de 2023 bateu o recorde de temperatura média global, um marco preocupante que não se alinha com os esforços necessários para mitigar os efeitos do efeito estufa. A falta de ação adequada continua a criar condições propícias para a amplificação dos fenômenos climáticos, resultando em tragédias humanitárias e econômicas.
O Rio Grande do Sul foi duramente atingido, com cerca de 2,5 a 2,7 milhões de pessoas afetadas pelas enchentes e deslizamentos na serra. Pessoas perderam tudo e terão que recomeçar do zero, seja no trabalho, no patrimônio, ou nas suas casas. Os desastres climáticos estão se tornando cada vez mais frequentes e intensos, superando recordes históricos. O que aconteceu no Rio Grande do Sul superou as enchentes de 1941, que são consideradas o maior desastre de Porto Alegre. Superou, e isso vai continuar acontecendo. Esses eventos não estão restritos ao Brasil. Em regiões desérticas, como Dubai, onde chove em média 97 milímetros por ano, registrou-se 125 milímetros de chuva em um único dia. A cidade não tinha infraestrutura para lidar com esse volume de água. E isso se aplica a todas as regiões do mundo.
As implicações globais são alarmantes. Vê-se momentos de enchente na China, na Índia, no Paquistão, em boa parte da Ásia, como também a falta de chuva. Na Colômbia, no Equador, não tem água potável. O aumento dos gases de efeito estufa na atmosfera, resultado da atividade humana, está desestabilizando o equilíbrio do planeta, tornando eventos extremos mais frequentes e severos.
A meta estabelecida no Acordo de Paris, de limitar o aumento da temperatura média global a 1,5°C, está em risco. No ano passado, já atingimos 1,45°C e a tendência é superar esse limite. O aumento dos gases de efeito estufa na atmosfera é contínuo. O planeta permanecia relativamente equilibrado quando a maior parte do carbono permanecia no solo. No entanto, o homem extrai esse carbono na forma de petróleo e carvão, além de liberar metano e outros gases. Isso está intensificando o aumento da temperatura média global.
É urgente a necessidade de ações concretas e coordenadas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. O futuro que foi previsto está se desenrolando diante de nossos olhos, e as medidas que tomamos agora determinarão a gravidade dos impactos que ainda estão por vir. Apesar de todos os fatores que envolvem o problema hoje vivenciado pelo Rio Grande do Sul, situações como essa são previsíveis e podem ser evitadas.
Todas as esferas governamentais do Brasil devem urgentemente criar políticas públicas ambientais para prevenir futuras catástrofes, um esforço que deveria ter sido contínuo ao longo dos anos. Empresas também precisam contribuir, pois planos para evitar desastres não são feitos rapidamente e a ajuda é necessária agora. Mais do que isso, precisamos cobrar, e muito. Essa união deve ser constante e contemplar a reconstrução das cidades e das vidas dessas pessoas. Além disso, devemos atuar juntos para prevenir novas catástrofes. A responsabilidade é de todos e existe recursos para tal. Até quando ainda teremos que ver tantas vidas sofrendo por falta de compromisso com a sociedade?