Produtora aproveita a presença da ave na propriedade para produzir um café exótico e de alto valor comercial com selo de certificação
A relação benéfica da ave com o cafezal já é conhecida há algum tempo. Muitos produtores já vêm trabalhando com a colaboração do animal para produzir um café muito especial. E, pelo que dizem, essa relação surgiu sem qualquer pretensão comercial e serviu de solução para os ataques que ameaçavam parte dos cafezais, o que diminuía a produtividade das lavouras. Antes disso, o animal era visto como um problema.
A mesma relação com a cultura acontece com o café Kopi Luwak (Café de cocô de civeta ou café de civeta), considerado o café mais caro do mundo. Ele é produzido na Indonésia, principalmente nas ilhas de Sumatra, Java, Bali, e Sulawesi, com as fezes de um mamífero chamado civeta asiárico (Paradoxurus hermaphroditus), com têm hábitos noturnos e gostam de escalar árvores, lembrando um gambá. Kopi é uma palavra indonésia para “café”, enquanto luwak é o nome local da civeta.
Ele também come o grão e não absorve a semente, que sai intacta ao defecar. A Indonésia tem uma longa tradição de café civeta produzido com fezes coletadas na natureza. O sistema digestivo das civetas fermenta e altera a composição química dos grãos de café, resultando em um gosto peculiar. Ma lá o sistema de produção vem sofrendo muitas críticas, pois os animais são mantidos em jaulas, sob condições cruéis, sendo forçados a se alimentar só de café. Na natureza, sua dieta inclui desde pequenos roedores a insetos e frutas como amoras, mangas e bananas. Em cativeiro, as gaiolas de ferro machucam suas patas dos animais e impedem que se escondam durante o dia, causando dor e estresse contínuos. Pra complicar, a maioria dos produtores desse café não sabe como cuidar da espécie, o que causa doenças e até a morte de civetas, tudo por um café gourmet.
A produção limitada dos grãos (menos de 230 Kg por ano) é um dos motivos de sua raridade e consequentemente seu alto preço (cerca de mil dólares o quilo do grão). É comercializado principalmente para o Japão, Europa e Estados Unidos. Seu sabor é descrito como uma mistura de chocolate e suco de uva. Menos ácido e amargo do que os cafés comuns.
Diferentemente do café asiático, o produzido aqui no Brasil se materializa por meio do ciclo da natureza, com o mínimo de intervenção humana possível. As aves vivem livremente e voam pela região como bem entendem. Isso significa que as fezes acabam sendo espalhadas pelo cafezal. Com uma plumagem preta e porte médio, a ave jacuaçu (Penelope obscura), popularmente conhecida como jacu, com já mencionado anteriormente, nem sempre foi bem-vinda nos cafezais. Isso porque ela se alimenta dos grãos maduros, atrapalhando o rendimento da colheita. Mas de ameaça, a ave se tornou uma aliada e responsável pela produção de um dos cafés mais caros do Brasil, o café do jacu. O nome da ave vem da língua tupi e significa “ave que se alimenta de grãos”.
E em Minas gerais, no Sítio Pico do Boné, Serra do Brigadeiro, em Araponga, na Zona da Mata, a presença da ave é constante e motivo de satisfação para a cafeicultora Kátia Belo Martins, pois sinaliza que já está na hora da colheita e também haverá uma boa quantidade de grãos do suave e exótico café do jacu.
Ela conta que a ave era uma ameaça, mas mudou de ideia após conhecer a importância do animal como dispersor de sementes, contribuindo para a regeneração florestal, e também sobre o alto valor dos grãos que são retirados das fezes dele. “Aqui tem muito jacu e a gente viu que, ao invés de espantar e vê-lo como inimigo, decidimos transformá-lo em aliado”, relata. Depois de pesquisar sobre o assunto, a produtora se inspirou no caso da Fazenda Camocim, em Domingos Martins, ES, do cafeicultor Henrique Sloper, o primeiro a desenvolver o café a partir das fezes do jacu no Brasil e é dono do Jacu Bird Coffee. Ele conheceu o Kopi Luwak quando surfava na Indonésia e conta que, ao perceber que as fezes do jacu são parecidas com as da civeta – com os grãos inteiros de café – decidiu testar a possibilidade de fazer o café exótico. O produtor levou mais de dois anos para desenvolver a bebida.
O café produzido na Fazenda Camocim é vendido entre R$ 1,4 mil e R$ 1,6 mil o quilo no Brasil. No exterior, na loja britânica de luxo Harrods o café chega a custar 1,4 mil libras por quilo (R$ 10,9 mil). No Brasil, o café exótico é vendido para cafeterias e empórios. Fora do país, as vendas são destinadas principalmente para países da Europa e para o Japão.
A colheita dos grãos do café do jacu é feita manualmente e de forma cuidadosa, afinal tem que procurar no chão, onde estão as fezes da ave. É dessas fezes, parecidas com um pé de moleque, que se retiram os valiosos grãos de café. Todas as tardes, Kátia conta com a ajuda da mãe e da irmã Cristiane, que é engenheira agrônoma, para recolher os excrementos do jacu. Elas escutam onde os jacus estão, vão até as árvores onde eles dormem, procuram no chão os “tesouros” e colocam no embornal. O sítio fica próximo ao Parque Estadual Serra do Brigadeiro e é nas matas nativas que os jacus vivem. As aves frequentam os cafezais na época de colheita para se alimentar dos grãos maduros de café, mas também se alimentam de outros frutos disponíveis na região.
Após recolhidas no terreno, as fezes passam por um processo de secagem. Os grãos, ainda misturados às fezes, são, então, selecionados e em seguida, passam por um processo de higienização, essencial, visto que a bebida é feita a partir dos dejetos do jacu. Depois de um período armazenado, o café passa por um processo chamado “torrefação”, que consiste em torrar o grão. A partir daí, os grãos são moídos e o pó é embalado para serem comercializados podem ser adquiridos em cafeterias e lojas especializadas.
Além de ser retirado das fezes de uma ave, há outras características que fazem com que esse café seja considerado exótico e tenha alto valor agregado. Entre os fatores estão a qualidade dos grãos que a ave se alimenta, o processo de fermentação, a dificuldade de colheita e a baixa produção. No processo com o jacu, o animal se alimenta dos melhores grãos de café, garantindo uma boa qualidade final e o processo de fermentação já ocorre no animal. Ao ser ingerido pela ave, o grão de café passa pela moela e é destroçado. No entanto, como ele é muito grosso, o sistema digestivo do jacu só vai processar a casca e a polpa do café, que é a mucilagem apenas e a semente passa direto até a defecação. Então o grão fica praticamente intacto, mas ele já passou por uma fermentação natural que confere a esse grão características sensoriais muito superiores ao café comum. Por esse mecanismo, as espécies dessa família são algumas das principais dispersoras de vários tipos de sementes de árvores nativas, cumprindo um serviço ecológico inestimável para a preservação da biodiversidade. Nesse ciclo de produção, o jacu não é um vilão e sim um aliado, pois não está comendo o café, mas processando e produzindo um produto de melhor qualidade.
Uma curiosidade importante para o sucesso dessa consorciação entre o animal e a planta, é que a colheita do café é favorecida, pois acontece durante o inverno: em junho, julho e agosto – meses em que a oferta de frutas, no geral, é mais escassa. Ou seja, essa combinação contribui para que o grão seja consumido pelo jacu. Não tendo outros frutos, o jacu é obrigado a se alimentar dos grãos de café!!!
O café do sítio leva a marca Penélope Majestosa, uma homenagem ao nome científico da ave e à majestosa Serra do Brigadeiro, onde vivem os jacus. A colheita exige um olhar atento e a produção é pequena, mas todo esforço vale a pena, pois a lista de espera para a compra do Penélope Majestosa é grande. A comercialização, por enquanto, é feita apenas no país. O valor da saca (60 kg) pode chegar a R$ 34 mil e o pacote de 150 gramas custa R$ 125,00.
Kátia Martins nasceu e cresceu no meio rural, formou-se em Administração de Empresas e voltou para as origens para continuar na cafeicultura, mesmo após passar por várias dificuldades. Ela e a família tomam conta de aproximadamente 80 mil pés de café cultivados no Sistema Agrícola Tradicional (SAT), ou seja, sem o uso de agrotóxicos. A renda é obtida pela comercialização do café especial Pico do Boné e do café gourmet Araponga. todos com o selo Certifica Minas. Os cafés do sítio já conquistaram o terceiro lugar no Concurso Regional de Café de Viçosa, em 2023. As condições climáticas, geográficas da região e a dedicação da produtora e seus familiares contribuem para o sucesso e a qualidade do produto.
Além do café, a família tem se aventurado no turismo rural. Por meio de agendamento, os turistas podem conhecer um pouco da história e da produção. O turista tem a oportunidade de conhecer uma experiência única, a começar pelo pé de café, como ele é plantado, o crescimento, a lavagem, a torrefação e a degustação de vários tipos de café e ainda saborear a maravilhosa comida feita no fogão a lenha, com alimentos produzidos no sítio.