O setor vive duas transformações que é a da profissionalização e a dos desafios climáticos. O El Niño nunca veio com tanta intensidade e está provocando um grande estrago
Criada há 45 anos, a Cooperativa Mista de Produtores de Leite de Morrinhos (Complem) viu o número de fornecedores de leite cair de 1.200 para 650 nos últimos anos. E apenas uma parte dos pecuaristas que deixou a central goiana saiu porque cresceu o suficiente para negociar diretamente com grandes laticínios. A razão da debandada é que o gado de leite perdeu espaço para a soja e o milho em meio às sucessivas crises do setor.
Dos cooperados que deixaram a atividade, 80% eram profissionais liberais, médicos, advogados, cantores e políticos, que perceberam que não estava funcionando. Gente que ia de tempos em tempos na fazenda, e deixava o negócio na mão de quem não era profissional. Aí o sonho do sítio, da fazenda e da brisa da natureza virou pesadelo.
Esse quadro de debandada em Goiás, que é uma das principais bacias leiteiras do país, também acontece em outras regiões de leite. Baixa produtividade, preços em queda e competição com lácteos importados explicam o cenário, agravado neste ano pela estiagem.
Dirigentes da Associação Brasileira dos Produtores de Leite (Abraleite), classificam 2023 como um ano “extremamente desafiador”. Observou-se uma baixa generalizada gigantesca nos preços ao produtor, não sendo a queda nas gôndolas proporcional, prejudicando principalmente milhares de produtores, sem trazer benefícios à população.
No acumulado do ano até outubro, o preço médio do leite ao produtor brasileiro caiu 8,4%, para R$ 2,51 por litro, em comparação com o mesmo período de 2022, segundo o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP.
Uma possível alta do consumo de lácteos no país nos próximos meses, afirmam analistas, pode aliviar em parte a pressão sobre o produtor brasileiro. Do lado da oferta, a tendência é que a captação de leite fique estável, também dando condições para uma reação dos preços no campo.
Verifica-se em Goiás que muitas áreas planas que eram de pasto para pecuária foram arrendadas para a agricultura, que se beneficia das reservas de água da região. Segundo a Pesquisa Pecuária Municipal (PPM) de 2022, Goiás produz cerca de 3 bilhões de litros de leite por ano, uma queda de 15% em dez anos.
Na Complem, além da queda no número de fornecedores, houve uma mudança no perfil: hoje, quase 70% dos produtores de leite da cooperativa são pequenos, com entregas inferiores a 150 litros ao dia. O volume de leite captado, que no auge chegou a 500 mil litros por dia, caiu para 120 mil litros.
O setor vive duas transformações que é a da profissionalização e a dos desafios climáticos. O El Niño nunca veio com tanta intensidade e está provocando um grande estrago. O fenômeno reduz as chuvas no sul de Goiás, prejudicando a oferta de pastagens para o gado.
Além de a produtividade média no país ser ainda muito baixa — seis litros por vaca ao dia —, o leite brasileiro é pouco competitivo em relação ao importado. Para a Abraleite, o aumento repentino das importações foi um dos principais fatores de pressão sobre as cotações do leite brasileiro este ano. O mecanismo trouxe uma desestruturação da cadeia produtiva do leite, promovendo até a inviabilização de permanência na atividade de muitos.
Os pecuaristas de Argentina e Uruguai foram beneficiados por subsídios e renegociação de dívidas oferecidas por seus governos. Além disso, mais leite estrangeiro foi direcionado ao Brasil porque países como China e Argélia importaram menos em 2023.
O resultado é que, até novembro, o país gastou US$ 806 milhões com as importações de lácteos e exportou apenas o equivalente a US$ 82 milhões, segundo a plataforma de estatísticas de comércio exterior Comex Stat.
A dependência do mercado doméstico preocupa, ainda mais porque a demanda avança de forma tímida. O volume de vendas da cesta de lácteos caiu de 5% a 6% na virada para 2023. Agora, o consumo dá indícios de que pode crescer — em setembro, a demanda foi 1% maior do que no mesmo período do ano passado.
É um aumento pequeno, mas apresenta uma reversão de tendência importante. Alguns indicadores econômicos, como o desemprego e juros em queda, também sinalizam um cenário favorável à recuperação da demanda interna.
Uma consequência da crise no setor de leite é que a produção no Brasil pode não crescer em 2024. A queda da rentabilidade, acentuada no segundo semestre de 2023, tende a fazer o produtor brasileiro poupar esforços em 2024. O ano deve começar com a produção, senão diminuindo, crescendo pouco ou estável.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que a captação de leite no Brasil alcançou 17,9 bilhões de litros entre janeiro e setembro de 2023, um aumento de 1,9% em relação ao mesmo período de 2022. Analistas do setor esperam que a produção formal totalize 24,2 bilhões de litros até o fim de 2023. O valor ainda não foi fechado.
Fonte: José Florentino – Globo Rural