Trabalhadores enfrentam condições precárias em embarcações sucateadas que colocam em risco a saúde e segurança de quem está a bordo
Péssimas condições de higiene, ambientes mal ventilados, chão escorregadio propício a acidentes, falta de assistência à saúde e dívidas trabalhistas. Essas são algumas das situações enfrentadas por quem trabalha em navios que atravessam oceanos carregando carga viva.
Em fevereiro, a passagem de um navio com 19 mil bois exportados vivos do Brasil levou um “fedor inimaginável” para a Cidade do Cabo, na África do Sul, num caso que chamou a atenção da mídia internacional. E a tripulação estava exposta a este cenário.
“As condições que os animais enfrentam, muitas vezes, são exatamente as mesmas condições que a tripulação enfrenta. Não tem como fazer isso (transportar gado vivo em navios) de uma maneira que garanta dignidade mínima aos trabalhadores e aos animais”, afirma Paula Cardoso, vice-presidente jurídica no Brasil da organização Mercy For Animals (MFA).
Navios sucata
O Al Kuwait – embarcação que levava os bois e atracou na Cidade do Cabo – é um “purpose-built” (especialmente construído), pois foi construído para o transporte marítimo de carga viva. Mas a existência de navios projetados para levar animais não é comum no setor. Das 44 embarcações que passaram pelos portos brasileiros entre 2015 e 2021, 33 são convertidas, ou seja, são estruturas que tinham outra finalidade – como transporte de veículos e contêineres e petróleo – e foram adaptadas para o translado dos animais.
“Esses ‘navios-sucata’ têm estabilidade muito baixa, e isso leva os animais e a tripulação a sofrerem muitos acidentes a bordo. Tem relatos de trabalhadores que escorregam, deslocam membros e se cortam com facas”, explica Paula Cardoso.
Sistemas de ventilação inadequados e falhas mecânicas também são mais comuns nessas embarcações, alerta a especialista. A média da frota que passou pelo Brasil entre 2017 e 2021 é de 39 anos, segundo dados compilados pela Mercy For Animals. Mas existem embarcações atuando no mercado que são mais antigas, como um navio libanês de 56 anos.
Adaptações e acidentes
Em 2009, todos os animais e as 55 pessoas da tripulação morreram em um navio com 17 mil bois que afundou na costa do Líbano. Seis anos depois, outro navio com 5 mil cabeças bovinas tombou no Pará. Já em 2020, um acidente no Japão matou 6 mil bois e apenas 2 das 43 pessoas da tripulação sobreviveram. Nos três casos, os navios eram embarcações convertidas.
Quase metade (21) das 44 embarcações que aportaram no Brasil entre 2017 e 2021 foram detidas ao menos uma vez por deficiências em áreas como “segurança da navegação” e “segurança contra incêndios”. Navios convertidos representam 93% das detenções, de acordo com a Mercy For Animals.
De toda frota que passou pelo Brasil, 32 embarcações tiveram performance considerada “média” e “baixa” em relação a segurança, controle de poluição e a condições de vida e trabalho da tripulação. O ranking é feito pelo Paris MoU, uma organização que reúne países em um acordo internacional que visa melhorar a segurança marítima.
A tripulação desses navios também relata dívidas trabalhistas. Em outubro de 2022, 13 trabalhadores filipinos ficaram mais de cinco meses a bordo de um navio abandonado depois que o dono da embarcação apreendida em Cingapura fugiu sem pagar os salários da tripulação. O mesmo aconteceu com uma tripulação de 36 pessoas – sendo 30 filipinos – que ficou presa na Austrália enquanto aguardava o pagamento de salários.
A força de trabalho desses navios é formada por pessoas de diferentes nacionalidades e é altamente rotativa, porque os tripulantes são contratados por períodos que, na teoria, não podem exceder 12 meses de serviço.
Um exemplo da diversidade de origens pode ser vista no próprio Al Kuwait, o navio com bois brasileiros que causou a recente onda de mau cheiro na Cidade do Cabo. Em 2020, 66% dos seus tripulantes era das Filipinas, 21% da Croácia e o restante da Índia, Austrália e da Tanzânia, de acordo com um estudo publicado em 2022 sobre o avanço da Covid-19 em navios de carga.
Bandeiras de conveniência e responsabilidades
A chamada lei do Pavilhão ou da Bandeira estabelece que as regras sobre a fiscalização das condições de trabalho em navios são de responsabilidade do país registrado em sua matrícula de embarcação, ou seja, de sua bandeira. Mas empresas que atuam no transporte de cargas frequentemente registram suas embarcações em países diferentes de onde mantêm a sede de seus negócios, numa prática conhecida como “bandeira de conveniência”.
Essa é uma forma de reduzir custos tributários e operacionais e se valer de legislações trabalhistas mais frágeis, segundo a Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes (ITF).
“Esta prática busca frequentemente burlar o cumprimento de normas nacionais mais benéficas aos trabalhadores, aos direitos humanos e à proteção do meio ambiente”, afirma a ITF em uma reportagem publicada na revista do Sindmar, o Sindicato Nacional dos Oficiais da Marinha Mercante.
As tripulações dos navios estão amparadas, pelo menos no papel, pela Convenção do Trabalho Marítimo da Organização Internacional do Trabalho (OIT). As bandeiras de conveniência, entretanto, dificultam a aplicação da legislação internacional já que, conforme explica Luiz de Lima, líder regional de Campanha Portuária para a América Latina e Caribe da ITF, os países onde estão registrados os navios são como “paraísos fiscais”, com legislações muito frágeis. Grande parte deles não aderiu à convenção.
Se um navio com problemas trabalhistas atraca em um país que é signatário da Convenção Marítima, a embarcação pode ser autuada pelas autoridades daquele país, ainda que opere com uma bandeira não signatária. Mas, mesmo assim, há obstáculos para a aplicação da lei.
“Os navios operam de forma muito rápida e o número de fiscais não é suficiente para atender toda a demanda. Até que a máquina da fiscalização se organize, muitas vezes já passou muito tempo e o navio foi embora”, explica Lima. A ITF conta com apenas 145 inspetores que atuam em portos do mundo todo.
Fiscalização no Brasil
A Convenção do Trabalho Marítimo existe desde 2006, mas só foi ratificada pelo Brasil em 2021. As embarcações que exportam animais do Brasil também precisam se adequar à Instrução Normativa 46, de 2018, que estabelece a metragem do espaço onde os animais serão transportados, a quantidade de cochos e bebedouros, a capacidade de tanques de água potável e como deve funcionar o sistema de ventilação. A norma, no entanto, não trata das condições de trabalho da tripulação.
Cabe ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) fiscalizar as condições sanitárias das embarcações que transportam animais vivos dos portos brasileiros. O embarque dos animais só é autorizado após a fiscalização do navio pelo médico veterinário e apresentação de documentação com as configurações do navio.
Por Isabel Harari e Daniela Penha/Repórter Brasil