A diminuição do volume pescado e o aumento da diversidade de espécies, com captura de peixes de tamanho pequeno e níveis inferiores na teia alimentar, são sinais da pesca insustentável
Quando era adolescente, no início dos anos 1980, Evanildo Sena voltava da pescaria de canoa arrastando cinco ou seis toneladas de peixes por vez, um trabalho em parceria com pelo menos mais um colega. De lá para cá, as mudanças na costa de Arraial do Cabo, estado do Rio de Janeiro, foram radicais, relata o pescador.
“Na época, eu pegava em torno de 300, 400 kg de peixe-espada a cada saída, e eles foram diminuindo praticamente ao ponto de desaparecer na nossa área”, ele diz. A captura da espécie era feita com anzol, um indivíduo por vez. Hoje, Sena pesca o que aparece na temporada, como anchova (Pomatomus saltator), lula (Loligo vulgaris), xerelete (Caranx crysus), graçainha (Caranx latus) e cavala (Scomberomorus cavalla) — algumas dessas em menor quantidade do que antes —, mas sua renda principal vem da retirada de mexilhão do costão, que pode ser feita entre janeiro e agosto, respeitando o período de defeso a partir de então.
Outra mudança que o pescador testemunhou, a partir da virada para século 21, foi o aumento das grandes embarcações de pesca comercial, que podem chegar a até 3 milhas da costa (4,8 km), nos limites da Reserva Extrativista Marinha do Arraial do Cabo, unidade de conservação onde só é permitida a pesca tradicional.
Esse momento coincide com o período em que os volumes de pescado começaram a diminuir na costa brasileira, segundo uma pesquisa, desenvolvida pelo grupo ReefSyn, que reúne pesquisadores de nove universidades públicas brasileiras, a partir da análise de um banco de dados de pesca em recifes de corais entre 1950 e 2015.
Os peixes recifais, alvo do estudo, são os que vivem associados aos recifes de corais em alguma fase da vida, e existem mais ou menos 400 espécies ao longo do litoral brasileiro. No norte e no nordeste do país, são os pescadores artesanais que mais pegam esses peixes, enquanto que no sul e no sudeste a maior parte do volume desembarcado é capturada pelas embarcações industriais, segundo as autoras do estudo entrevistadas pela Mongabay. Essas duas classes de pesca, citadas na legislação brasileira, têm, na verdade, subclasses, apresentando uma gradação de embarcações pequenas a grandes.
O trabalho identificou 110 espécies de peixes recifais no desembarque de pescarias nesse período (quantidade que de fato chega em terra, descontadas as perdas que acontecem no caminho depois da captura). As regiões com maior volume de pescados foram o nordeste, sudeste e norte, nessa ordem, com os volumes aumentando de 1950 até o fim dos anos 1990, quando se chegou a um pico de desembarque, seguido pelo declínio contínuo de várias populações de peixes recifais desde os anos 2000 até hoje.
O principal motivo da redução neste século é a pesca predatória, segundo o estudo — mas aqui vale uma ressalva: o que garante a sustentabilidade da atividade tem menos relação com a classe de barcos (artesanais ou industriais) do que com o atendimento a parâmetros de controle, monitoramento e regularização. Isso significa que tanto a pesca artesanal quanto a industrial podem ser sustentáveis ou predatórias, dependendo de como a pesca é feita.
Um segundo resultado da pesquisa foi a identificação de que, com o passar dos anos, as espécies pescadas foram mudando, devido à disponibilidade de estoque, o que levou a um aumento da diversidade de peixes capturados. “Temos relatos de pescadores na Bahia que estão pescando peixes muito pequenos, como o sargentinho (Abudefduf saxatilis). Isso quer dizer que a gente está pescando praticamente tudo que tem, de predadores de topo (de cadeia) a peixes herbívoros”, afirma Mariana Bender, bióloga do Departamento de Ecologia e Evolução da Universidade Federal de Santa Maria e autora sênior do artigo.
“Isso quer dizer que estamos diminuindo os recursos, e a continuidade de exploração dessa diversidade vai levar ao colapso dos sistemas marinhos, com impactos para além dos recifes de corais, chegando às pessoas, ao turismo“, avalia Bender. “Sem manejo e monitoramento, haverá um impacto bem grande sobre a sociedade, principalmente sobre as comunidades pesqueiras que mais dependem desse recurso”.
O efeito da pesca predatória no Brasil tende a ser pior do que o abordado pela pesquisa, pois não há dados refinados e atualizados — os últimos registros governamentais sobre a atividade são de 2015. “A gente usou dados em escala estadual, porque não existem dados disponibilizados para a escala de município no Brasil. Chegar nesses dados foi bem desafiador”, explica Bender.
É justamente a falta de dados mais variados e robustos no país que faz com que a pesquisa consiga apenas afirmar a redução na quantidade de volume desembarcado, mas não possa dizer a porcentagem de perda de espécies.
“No Brasil, não existem dados sobre a maioria dos estoques pesqueiros, o que tem de biomassa total para esses estoques específicos em lugares diferentes”, diz Linda Eggertsen, coautora do estudo. Esse tipo de informação é importante para a gestão da pesca no país, mas só existe para o peixe-vermelho (Lutjanus sp), que se pesca no norte, afirma a pesquisadora.
Outra informação importante que indica o tamanho do estoque, e que também está faltando no Brasil, é o esforço empregado na pesca, que diz respeito ao tempo que as pessoas usam para capturar aquele volume, ao tamanho ou à quantidade de barcos e à dimensão da rede.
“Hoje em dia pesca-se poucas toneladas e antigamente se pescava mais, mas a gente não sabe exatamente como isso se relaciona com o tamanho do estoque, porque não sabe o esforço que é usado hoje em dia na pesca”, diz Eggertsen. Segundo as autoras, o cenário atual mais provável é um esforço maior para fazer capturas menores, justamente porque as pessoas já pescaram demais.
A diminuição da quantidade de peixes pescados levou à própria diminuição da atividade da pesca tradicional. Arraial do Cabo tem hoje cerca de 1.200 pescadores cadastrados, menos do que existia antigamente, segundo Sena. Na época em que a pesca do peixe-espada era abundante, 75 barcos saíam para o trabalho, enquanto que hoje conta-se nos dedos de uma mão a quantidade de canoas que tentam a sorte no mesmo local.
O mesmo aconteceu em Ponta do Corumbau, uma vila de pescadores no município de Prado, na Bahia, onde Edimilson Conceição do Carmo dedicou duas décadas dos seus 44 anos à pesca. Indígena Pataxó da aldeia Barra Velha, hoje trabalha com educação ambiental e monitoramento de recifes no projeto de conservação e pesquisa Coral Vivo, em Porto Seguro.
Desde a infância, Carmo vem percebendo a diminuição da quantidade de pescado e a quase extinção de algumas espécies — como o mero (Epinephelus itajara) e o budião-azul (Scarus trispinosus) —, além de mudanças na rotina dos pescadores que seguem na profissão, como precisar ir mais longe da costa e passar mais tempo no mar para conseguir pegar um volume maior de peixes. “Não é como era antes, que na beira da praia a gente já conseguia pescar. Hoje não tem mais isso. Antes o pescador pescava menos e pegava mais, hoje pesca mais e pega menos”, relata.
Se por um lado a atividade tradicional diminuiu, a quantidade de embarcações maiores aumentou, especialmente na região de Porto Seguro, que não é uma reserva marinha como Corumbau, onde a pesca artesanal segue um plano de manejo.
No seu trabalho de educador ambiental, Carmo conversa frequentemente com os pescadores sobre maneiras de garantir a sustentabilidade da profissão. “A gente passa pra comunidade de pesca informações sobre quais espécies podem ser pescadas, a época certa de pegar o peixe, o tamanho certo, e eu senti uma diferença maior em relação ao conhecimento nesses anos de trabalho; os pescadores estão mais conscientes sobre seu pescado”, relata.
Gestão integrada para combater a diminuição dos peixes
O combate à pesca predatória começa com informação. “O monitoramento é fundamental para entender o que é pescado ao longo da costa, qual o esforço da pesca e saber para onde vai o pescado. A gente não sabe o que é consumido aqui no Brasil e o que é exportado em nível de espécie; a maioria dos dados disponíveis junta tudo sob a descrição peixe“, afirmam as pesquisadoras, recomendando também que a gestão pesqueira incorpore as pessoas locais e que exista um controle maior nos mercados locais sobre o que é vendido, evitando a venda de espécies proibidas de serem pescadas.
Gilberto Sales, diretor do Departamento de Gestão Compartilhada de Recursos Pesqueiros do Ministério do Meio Ambiente, concorda com a premissa. “A fiscalização acontece e tem aumentado gradativamente nos últimos anos, mas a gestão pesqueira depende de elementos mais ligados ao monitoramento e ao controle. Essa tem sido a maior dificuldade do Brasil há muitos anos devido à instabilidade institucional da gestão pesqueira”, avalia.
O atual Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) foi recriado em janeiro de 2023, como parte da administração vigente, depois de ter virado uma secretaria no governo anterior. “Como a gestão pesqueira é muito centralizada na esfera federal, principalmente na área costeiro-marinha, a instabilidade na estrutura não permitiu ter programas contínuos de monitoramento”.
Desde o ano passado, o Ministério do Meio Ambiente e o MPA compartilham a gestão da pesca e estão trabalhando em propostas para melhorar o cenário atual. Algumas das ações reestruturantes que têm sido feitas, segundo Sales, incluem a recuperação das condições de monitoramento a partir de cooperações com universidades e institutos de pesquisa, o ressurgimento e aprimoramento dos fóruns de gestão locais e a revisão da principal norma de pesca do país, a INI nº 10, que estabelece uma matriz de permissionamento, com detalhes sobre cada espécie passível de captura. Para agrupar as informações derivadas dos monitoramentos, o MPA está trabalhando num banco de dados integrado online.
“Todas as ações são urgentes, mas a mais importante que a gente tem conseguido avançar com o MPA é ressuscitar os fóruns de gestão locais, que deixaram de funcionar há muito tempo. Sem eles, falta um espaço de discussão científica e com o setor, e isso também gera um vazio de monitoramento daquela atividade”, afirma Sales, pontuando que os fóruns conseguem dar respostas mais próximas dos problemas de pesca. Tanto em nível nacional (que nunca deixou de acontecer) quanto local, os fóruns são compostos por órgãos gestores, entidades da sociedade civil, universidades e pescadores.
A expectativa de Sales é que os dois ministérios consigam concluir a criação de um novo decreto para gestão pesqueira, reavivar os fóruns locais e revisar a matriz de permissionamento até o fim de 2024. Além de criar uma estabilidade normativa maior, essas ações devem dar resultados mais efetivos de monitoramento nos próximos anos, avalia o diretor, mas a instabilidade política é muito grande, o que coloca a gestão pesqueira em risco no longo prazo. “O sonho de consumo é a criação de uma autarquia para a gestão da pesca no país, assim como o Ibama“, diz Sales.
Enquanto o sonho não vira realidade, as parcerias, os diálogos e um novo ordenamento jurídico estabelecem as bases para que a gestão pesqueira se fortaleça no país, contribuindo para a sustentabilidade da pesca e a proteção da biodiversidade.
Fonte: Mongabay/Matéria publicada por Xavier Bartaburu