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Pesca, um setor fantasma no Brasil

Rede de pesca

Globalmente, a atividade pesqueira alcançou 92 milhões de toneladas de proteína anualmente, gerando 38 milhões de empregos e movimentando US$ 140 bilhões, segundo a FAO, que ainda estima que metade dos estoques pesqueiros vem sendo explorada em níveis excessivos no mundo e outros 40% são explorados em sua capacidade máxima, não havendo espaço para aumento de produção em curto prazo. No Brasil, a falta de dados impede uma análise completa desse cenário. A situação do setor é precária. Os pescadores em todo o país enfrentam a invisibilidade de sua cadeia devido à ineficácia do estado ao longo de décadas. A pesca brasileira, incluindo a industrial, se torna diminuta em comparação com outros setores alimentícios, carecendo de informações básicas para embasar políticas setoriais que a valorizem adequadamente.

Apenas 8 (7%) dos 117 estoques pesqueiros que são alvo da pesca comercial marinha brasileira têm informações quantitativas disponíveis, segundo o relatório Auditoria da Pesca Brasil 2021. Desses, 4 estão sobrepescados (população abaixo dos níveis seguros, do ponto de vista biológico) e 2 estão explorados em níveis acima da capacidade de reposição natural, gerando declínio na sua abundância. Apenas 9% dos estoques explorados comercialmente no Brasil possuem planos de gestão, ao passo que somente 4% dos recursos pescados possuem um limite de captura definido. A tainha é a única espécie das 117 que conta com um limite de captura definido pelo governo e elaborado a partir de dados científicos. As demais espécies que possuem limites de captura têm esses mecanismos estabelecidos por organizações internacionais.

Pesca irregular – Arrasto na arrebentação. Litoral norte de São Paulo

Os monitoramentos de desembarque existentes abrangem somente as regiões Sudeste e Sul, o que corresponde a uma cobertura de apenas 50% das pescarias analisadas e explica a falta de dados de pesca no país. O documento indica que o Brasil continua atrasado no desenvolvimento e na implementação de políticas públicas de pesca marinha sustentável, o que provoca um risco elevado de que estoques de espécies importantes estejam sendo superexplorados. Os dados são da Oceana, organização não-governamental dedicada exclusivamente à conservação dos oceanos, que opera com 18 bases em 11 países e na União Europeia e está no Brasil desde 2014.

Segundo o oceanógrafo Martin Dias, diretor científico da Oceana Brasil, quando se olha para o quadro de insegurança alimentar no Brasil e, por outro lado, para o enorme potencial de produção dos chamados “alimentos azuis” (que têm sua origem no ambiente aquático de oceanos, rios e lagos e fornecem 15% da proteína animal consumida no mundo), encontra-se um cenário de alto risco, resultado da precariedade do ordenamento da pesca no país, que não só deixou de evoluir nos últimos anos, mas ainda regrediu em alguns aspectos, como na transparência e no ordenamento pesqueiro.

Vivemos um apagão de dados e estamos pescando às escuras sem saber o quanto se produz, de quais espécies, por quantos barcos, gerando qual receita. Essas lacunas existem há muito tempo e evidenciam que o governo brasileiro não imprime a essa atividade os atributos de uma política de estado, que possa promover o desenvolvimento sustentável.

Tainhas

A invisibilidade da pesca no Brasil é evidenciada pela falta de conhecimento do estado sobre o número de pescadores em atividade. A ausência dessas informações dificulta a formulação de políticas públicas eficazes, pois não se sabe quem são os profissionais, onde atuam e o que produzem. A falta de um retrato preciso da pesca no Brasil é apontada como um obstáculo para compreender essa cadeia dinâmica. Além disso, a dificuldade dos pescadores artesanais em obter licenças e carteiras de pesca destaca a carência de estrutura, comparada à situação hipotética de o Detran não conseguir emitir licenciamentos de veículos ou carteiras de habilitação.

Sem uma modernização da política pesqueira nacional, a tendência é seguir com pequenos avanços intercalados por grandes retrocessos, perpetuando um ciclo vicioso que é prejudicial tanto sob a ótica econômico-social quanto ambiental. O contexto é ainda mais preocupante nas regiões norte e nordeste, que além de apresentarem maiores deficiências no ordenamento e monitoramento da pesca, são as que possuem populações costeiras com maior dependência da atividade pesqueira, seja como fonte de alimento ou como fonte de renda.

O quadro geral do ordenamento pesqueiro conta até o momento com normas ultrapassadas e a Lei da Pesca (Lei Federal nº 11.959/2009) é incapaz de promover o desenvolvimento sustentável dessa atividade, sobretudo em decorrência das fragilidades nas suas definições, da ausência de princípios importantes e pela não definição de atribuições e responsabilidades da autoridade pesqueira, gerando um quadro de instabilidade. A ausência de um marco legal eficiente enfraquece a política que deveria servir como guia de como a gestão pesqueira deve se dar.

Os Pescadores

À margem dos direitos sociais e trabalhistas, pescadores brasileiros não veem os ganhos prometidos pelas bilionárias trocas comercias da globalização. Apesar de serem peça-chave no projeto do governo para ampliar a produção nacional de pescado, a maioria dos trabalhadores do setor não possui carteira assinada nem proteção previdenciária adequada, além de enfrentar jornadas excessivas, condições precárias dos barcos e formas controversas de remuneração. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a pesca tem um dos mais altos índices de acidentes fatais. Para o pescador, tudo é difícil.

A solidão sempre esteve associada ao pescador. No entanto, além da característica de isolamento, suscetível às intempéries naturais – como tempestades e mar agitado -, os pescadores se deparam cada vez mais com a pressão econômica vinda do armador e uma sensação de insegurança contínua, motivada pelo perigo iminente e pelos ganhos incertos. Antes da partida para o mar, os donos de barco costumam repetir aos seus homens que o investimento na “armação” – equipagem da embarcação – é alto, o óleo diesel tem um custo elevado e “quem não pescar, não ganha”.

A despeito das cobranças por produtividade, as condições a bordo das embarcações geralmente são péssimas. A situação se agrava sobretudo nos barcos de pequeno porte, que possuem até 20 AB (toneladas de arqueação bruta). Com espaço interno reduzido os barcos servem de cabine de comando, alojamento e cozinha improvisada. Nos beliches de madeira, há apenas esponjas fétidas e gastas, sem lugar para acomodar todos. Não há banheiro a bordo para atender às necessidades fisiológicas e higiênicas da tripulação. A água potável é acondicionada em tambores de plástico que, ao passar dos dias, ficam com o gosto alterado. Ninguém recebe Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Esse o quadro corriqueiro das condições de trabalho do pescador. A bordo de um barco desses o pescador costuma ficar no mar em torno de 15 dias, em viagens de até 72 horas de duração para chegar ao local da pesca. Trabalha em torno de 12 horas por dia.

Barco de pesca de pequeno porte

Há barcos pesqueiros em operação na costa brasileira com mais de cem anos de atividade. Muitas embarcações, jangadas e traineiras apresentam problemas de manutenção e não possuem sequer coletes salva-vidas. Mesmo assim, os barcos seguem mar adentro, buscando peixes cada vez mais longe, lançando redes que costumam ter entre 2 e 8 Km. Segundo estudos da Avaliação do Potencial Sustentável dos Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva (Revizee), 80% dos recursos pesqueiros no Brasil estão sobre-explorados, ou seja, estão sendo capturados acima dos limites sustentáveis para sua sobrevivência permanente.

Informalidade

De acordo com o recente levantamento do Painel de Consultas do SISRGP (Registro Geral da Atividade Pesqueira), o Brasil conta neste momento com 1.035.478 pescadores profissionais ativos, todos devidamente licenciados. Desse total, 507.896 são mulheres – o que representa 49% de participação feminina no ofício.

O índice de informalidade do setor é um dos mais altos do país. Segundo estimativas do Ministério Público do Trabalho (MPT), cerca de 90% dos pescadores não possuem carteira de trabalho assinada.

À exceção da pesca industrial, onde a maioria dos trabalhadores tem carteira assinada, nas embarcações de pessoas físicas o cenário é de grande informalidade. A maioria trabalha sem direitos sociais, totalmente desprotegidos.

Atividade ancestral no Brasil, a pesca atualmente possui distinções internas. Existe o trabalhador artesanal, dono do fruto do seu trabalho, e o empregado em embarcações pesqueiras, que podem pertencer a pessoas físicas ou jurídicas. Muitos pescadores ainda se apresentam como “artesanais” para conseguir obter o seguro-defeso, assistência financeira temporária. Em razão desse benefício temporário, parte dos pescadores não tem interesse em estabelecer vínculo formal com a empresa, direito que faz falta numa situação de acidente, por exemplo. A brecha é aproveitada até por armadores. Empresários que muitas vezes têm diversos barcos e empregam outros pescadores também se dizem artesanais. Quando há uma relação de emprego, independentemente do nome que se dê, o trabalhador é empregado. O explorador da mão-de-obra, o dono ou armador do barco, tem que cumprir com a legislação, assinar a carteira e pagar pelo menos um salário mínimo por mês.

Diante do alto índice de informalidade, a estratégia adotada pelo MPT tem sido reunir trabalhadores de pesca por regiões e promover Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) com os donos de barcos para viabilizar o registro dos trabalhadores. No entanto, o trabalho tem limitações. É preciso intensificar a fiscalização por parte do MTE. O número de fiscais ainda é insuficiente e são poucos auditores especializados.

Criada em setembro de 2003 por decisão da Procuradoria Geral do Trabalho, a própria Coordenadoria Nacional de Trabalho Portuário e Aquaviário – Conatpa apenas recentemente vem dando maior atenção à atividade. Nos últimos anos, o trabalho aquaviário, incluindo navegação e pesca, tem aparecido com mais frequência na agenda da entidade. Ao todo, o MPT possui hoje cerca de 80 promotores que trabalham diretamente nessa área.

As recomendações(H3)

A Oceana lista várias recomendações para a gestão do setor pesqueiro. Entre elas, podemos destacar:

Pescadores descarregando o resultado da pesca

A atividade pesqueira é de suma importância para a segurança alimentar e a garantia de emprego e renda. No entanto, para a Oceana, sem monitorar os estoques pesqueiros jamais saberemos como estão respondendo à pressão da pesca, tampouco encontraremos meios para equilibrar uso e conservação. A conquista desse equilíbrio passa pelo planejamento e implementação de medidas que visem controlar a pesca e monitorá-la. Só assim vamos dar sustentabilidade e visibilidade a essa pungente cadeia produtiva.

A pesca tem sido desprezada como fonte de emprego, renda e segurança alimentar. Os alimentos azuis dependem da pesca para chegar aos pratos da população. A falta de uma gestão eficiente dessa atividade coloca em risco a fonte de renda e alimentação de milhões de brasileiros.

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