Pela sua abrangência e resultados alcançados, o projeto foi eleito um dos cinco melhores projetos do mundo pelo Fida
Com índices de extrema pobreza, o semiárido nordestino é uma das regiões menos desenvolvidas do Brasil. Superar a miséria e fortalecer os sistemas e as políticas públicas alimentares nessa região é o principal desafio do Projeto Dom Helder Câmara, coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA). Entre os meses de setembro de 2022 e fevereiro de 2024, uma equipe de pesquisadores e analistas da Embrapa Alimentos e Territórios executou diversas atividades dentro do projeto Segurança Alimentar e Nutricional e de geração de renda para agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais do Semiárido brasileiro, conduzido no âmbito da segunda fase do Projeto Dom Hélder Câmara (PDHC II). As ações beneficiaram direta e indiretamente cerca de 55 mil pessoas que vivem nesta região. Os recursos de R$ 2.713.095,00 foram financiados pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida).
Com foco nas populações tradicionais e em situação de vulnerabilidade social, o público beneficiado pelo projeto envolveu agricultores familiares, povos indígenas, quilombolas, merendeiras, nutricionistas e estudantes de 30 municípios de cinco estados nordestinos: Alagoas, Bahia, Pernambuco, Piauí e Sergipe. Pela sua abrangência e resultados alcançados, o PDHC II foi eleito um dos cinco melhores projetos do mundo pelo Fida.
O projeto integrou a equipe e proporcionou ao Fida uma oportunidade bem ampla de trabalho com inclusão socioprodutiva envolvendo agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais e com várias cadeias importantes para a agricultura familiar.
Realizado com metodologia participativa, o projeto promoveu uma intensa troca de conhecimentos e experiências sobre a importância do uso e conservação da agrobiodiversidade, e o potencial que as espécies da caatinga possuem para a alimentação e o desenvolvimento sustentável da região. Distribuídas por eixos temáticos, as atividades abordaram quatro temáticas principais:
- Manejo da sociobiodiversidade e da agrobiodiversidade; – Produção orgânica e agroecológica;
- Premiação de iniciativas de valorização de Sistemas Agrícolas Tradicionais (SATs) e alimentação escolar;
- Valorização do patrimônio ambiental e cultural pela agregação de valor a iniciativas de geração de renda.
O relatório de conclusão apresentado relaciona:
- 86 capacitações técnicas oferecidas, entre cursos, palestras, webinários e oficinas de boas práticas de fabricação e beneficiamento de produtos alimentares artesanais e tradicionais;
- 10 publicações;
- 8 vídeos;
- 7 Unidades de Experimentação Participativa sobre quintais produtivos;
- 3 mapas temáticos;
- 2 concursos.
Foram realizados ainda intercâmbios de experiências e práticas e o seminário final “Diálogos sobre Agroecologia, Territórios e Cultura Alimentar”, que reuniu órgãos governamentais e representantes de todos os públicos beneficiados. As ações foram executadas, em sua maioria, em parceria com outros centros de pesquisa da Embrapa, além de universidades, instituições públicas, empresas privadas e organizações do terceiro setor.
Legado de autonomia
Um legado de autonomia e inclusão socioprodutiva também está entre os frutos colhidos com o projeto. Focado no desenvolvimento territorial, tendo como ator principal a questão dos alimentos brasileiros e as pessoas envolvidas. Esse tipo de abordagem permitiu que esses atores locais desenvolvessem autonomia para a gestão dos espaços, das propriedades, ou mesmo de pequenos empreendimentos voltados para a questão alimentar. Esse é o principal legado deixado: contribuir para a autonomia dessas pessoas nesses territórios.
Para reforçar o legado de autonomia, uma das ações de comunicação do projeto foi a realização de uma oficina de produção e edição de vídeos voltada para jovens das comunidades onde o projeto atuou. Nesta oficina, trabalhou-se dois conceitos, o de território e o de identidade, além de técnicas de produção e edição de vídeos. A oficina aconteceu em Piranhas, um município do sertão alagoano e os jovens experimentaram o uso de ferramentas de produção e edição de vídeos. A oficina é um instrumento para empoderamento, para que eles mesmos possam divulgar os territórios, as ações que acontecem, suas manifestações culturais, enfim, que possam ser protagonistas nesse processo de divulgação.
Os resultados alcançados pelo projeto também estão fortemente alinhados aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), em especial a erradicação da pobreza (ODS 1), fome zero e agricultura sustentável (ODS 2), igualdade de gênero (ODS 5), trabalho decente e crescimento econômico (ODS 6), redução das desigualdades (ODS 10) e consumo e produção sustentáveis (ODS 12).
Manejo da sociobiodiversidade e da agrobiodiversidade
A ação foi focada em comunidades Fundo de Pasto do município de Uauá, Juazeiro, Campo Alegre de Lourdes, Sento Sé, Pilão Arcado e Curaçá, todos na Bahia, e na comunidade quilombola Andorinhas (Sento Sé, BA) e povo indígena Atikum (Petrolina, PE). O trabalho foi compreender a relação entre esses dois temas e como a cultura alimentar, que é parte da cultura mais ampla daquele modo de vida específico, consegue articular a conservação da agrobiodiversidade, o uso e manejo da biodiversidade, as festas e rituais, tudo o que está expresso naquele território.
Outra parte do trabalho consistiu na construção de um mapeamento agroecológico participativo, utilizando uma metodologia desenvolvida para delimitar os espaços de uso e manejo da agrobiodiversidade, como quintais, roçados, criação animal, com o intuito de facilitar a gestão ambiental e territorial das áreas onde vivem as comunidades.
Nesse trabalho, sistematizou-se esse conhecimento tradicional da diversidade tão dispersa da caatinga que a população conhece, maneja e utiliza, seja no extrativismo, seja para usos medicinais, mas também quanto à diversidade da agricultura e da criação animal que essas comunidades têm. A comunidade pesca, planta, comercializa o excedente e também partilha com outras comunidades, não só o pão, mas também o saber, o jeito de visitar, costumes.
O mapeamento agroecológico possibilita uma visão geral das relações da comunidade com determinado território, e a cultura alimentar veio evidenciar um pouco mais os processos históricos ligados à cultura e alimentação. Ao contrário do que muitos pensam, essas comunidades têm uma segurança alimentar muito rica, muito forte, e um modo de vida com uma cultura própria, manejo próprio da cultura alimentar.
Produção orgânica e agroecológica
Oficinas sobre técnicas para o aperfeiçoamento da produção e criação de novos produtos agroalimentares como doces, geleias, compotas, bebidas fermentadas e biscoitos à base de frutas e alimentos da região semiárida foram algumas das ações desenvolvidas pelo eixo temático “Produção orgânica e agroecológica”. As ações resultaram em oportunidades de diversificação das fontes de renda para os agricultores e comunidades beneficiadas e também a geração de novos negócios, como a meliponicultura.
Outra ação ligada a este eixo temático foi a instalação de Unidades de Experimentação Participativa, espaços de inovação social voltada para a experimentação de agricultores e agricultoras em torno da produção de mudas orgânicas e hortaliças.
Foram instaladas também três Unidades de Experimentação sobre Quintais Produtivos Agroecológicos, integrando produção vegetal e animal e fortalecendo os cultivos de pomares, hortas medicinais e a produção de bioinsumos.
Foram implantadas estufas, reforma de galinheiros, instalação de tecnologias sociais, como o biodigestor e algumas capacitações sobre o Sistema Participativo de Garantia – SGP para a produção orgânica de mudas de hortaliças. Os SPGs podem ser definidos como organismos através dos quais é feita, de forma participativa, a avaliação do grau de aplicação de uma norma ou referência relacionadas à produção orgânica no Brasil.
Além dessas atividades, executou-se um conjunto de ações com sementes crioulas e sementes tradicionais, como a elaboração de um catálogo da agrobiodiversidade de sementes crioulas e a instalação de um campo de produção de sementes crioulas na região de Palmeira dos Índios (AL).
Oficinas de apicultura e meliponicultura foram realizadas tanto para populações tradicionais quanto para povos indígenas. Na aldeia dos Tingui-Botó, localizada em Feira Grande (AL), já está em produção o mel indígena do Apiário Tingui-Botó.
Dentro do projeto, tinha-se a meta de trabalhar o tema apicultura, produção de mel e outros produtos de abelha Apis mellifera dentro de duas terras indígenas, TI Ilha de São Pedro Caiçara, no município de Porto da Folha, em Sergipe, e a TI Tingui-Botó, no município de Feira Grande, em Alagoas. Trabalhou-se a biologia das abelhas, a apicultura como negócio, as técnicas de produção, foram comprados kits de materiais para iniciar a produção com caixas de abelha padrão, equipamentos básicos, EPIs completos, como macacão, máscara, e todo o equipamento necessário para iniciar uma atividade com apicultura, pensando na comercialização também desses produtos, no curto, médio e longo prazo.
Premiação de iniciativas de valorização de Sistemas Agrícolas Tradicionais (SATs) e alimentação escolar
Doze Sistemas Agrícolas Tradicionais (SAT) do Semiárido brasileiro, que se destacam por suas práticas, tecnologias, conhecimentos e rituais, contribuindo para a segurança alimentar e a conservação da biodiversidade, foram selecionados e reconhecidos pelo Prêmio Dom Helder Câmara, uma das iniciativas do PDHC II.
O Prêmio Dom Helder Câmara para Sistemas Agrícolas Tradicionais do Semiárido é fruto de uma articulação para reconhecer e premiar o trabalho que é feito pelos agricultores, povos e comunidades tradicionais. Um trabalho de resiliência, de adaptação aos diversos biomas e situações muitas vezes extremas em que vivem. O trabalho teve como foco os sistemas agrícolas do semiárido brasileiro, valorizando as iniciativas que ofereceram respostas para um cenário de mudanças climáticas. Para ser reconhecido pelo prêmio, o sistema agrícola precisava atender a cinco critérios: segurança alimentar, conhecimento tradicional, conservação da agrobiodiversidade, organização social e manejo da paisagem.
Foi acrescentada uma sexta condição que é conseguir relacionar receitas culinárias ao sistema agrícola tradicional. Nesse período, depois de muitas visitas, foram selecionados doze sistemas agrícolas tradicionais do semiárido com a parceria do Ministério do Turismo, Ministério da Cultura, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA). Essas instituições visitaram os sistemas agrícolas junto com os técnicos da Embrapa, além de convidados especiais que foram a cada um deles, conhecendo muito bem esses sistemas antes de efetivamente premiá-los.
Outra vertente do eixo temático foi a alimentação escolar. Foram promovidas uma série de atividades em escolas de 21 municípios de Alagoas, reunindo professores, estudantes e seus familiares, com o intuito de promover uma alimentação consciente e saudável. Destacam-se, ainda, o concurso para nutricionistas e merendeiras, com coordenação do Sebrae Alagoas, que incentivou o aproveitamento integral dos alimentos, estimulando a criação de receitas com produtos típicos da caatinga, o uso e a valorização dos produtos agrícolas regionais na merenda escolar.
Valorização do patrimônio ambiental e cultural pela agregação de valor a iniciativas de geração de renda
A segurança alimentar e a soberania alimentar passam pela diversidade de modos de vida, de plantas, de ambientes. É essa diversidade que tem mantido as propriedades dos agricultores nesse local e nessa relação entre eles também. As atividades desse eixo incluíram oficinas para a construção de um Plano de Conservação Dinâmica da Sociobiodiversidade, ou seja, um planejamento para fazer a conservação dos bens materiais e imateriais dos territórios onde vivem as comunidades atendidas pelo projeto, de maneira dinâmica.
Realizou-se oficina sobre o uso da cartografia, sobre o patrimônio e visitas ao Museu de Arqueologia de Xingó (SE) para entender que, de forma geracional, eles estão aqui há muito mais tempo, há mais de 9 mil anos. Então, ao final, junto com a comunidade, selecionou-se quatro temas interessantes para os participantes: modo de vida, agrobiodiversidade, luta pela terra e patrimônio cultural. A partir daí, foram confeccionados mapas desses temas e ficando claro para todos a riqueza que eles possuem. Um trabalho grandioso que permitiu conhecer profundamente sobre os modos de vida, sobre o que a caatinga representa para a comunidade e o que a comunidade representa para a caatinga.
Como no semiárido a agricultura se desenvolve só no inverno, a comunidade precisava de formas que gerassem alguma renda para que as mulheres e os jovens pudessem ter alguma atividade com os bens naturais, lógico que com a preservação, porque não existe turismo sustentável se não houver a preservação do local.
Os pesquisadores do projeto destacam que não se consegue construir nada de pesquisa e desenvolvimento se não levar em conta o saber dos agricultores, o conhecimento local, aquilo que vem sendo transmitido de geração em geração e que vem sendo modificado. Trata-se de uma conservação dinâmica, porque é a capacidade que os agricultores têm de enfrentar as situações de adversidade, como as mudanças climáticas, a modernização da agricultura, que, às vezes, vem priorizando muito a monocultura e na caatinga se verifica que é essa diversidade que tem mantido as propriedades dos agricultores nesse local, nessa relação entre eles também.