A recuperação das áreas vai exigir correção, reconstituição do solo e adaptação dos modelos produtivos, envolvendo técnicos, produtores e entidades ligadas à produção agropecuária
O Rio Grande do Sul ainda enfrenta os reflexos das enchentes de maio que impactaram mais de dois milhões de pessoas e 200 mil propriedades. Muitas áreas no território gaúcho que não poderão ser semeadas na próxima safra. Nesse cenário, autoridades, entidades e público se reuniram nesta semana, na Expointer, para debater soluções para a reconstrução do estado.
Quando se discute reconstrução do solo, automaticamente levanta-se a questão da geração de renda para o produtor rural. Além da questão agronômica envolvida neste processo, discute-se também diversificação de culturas e redirecionamento do produtor para outras atividades agropecuárias quando for necessário. Levantamento da Emater-RS aponta que pelo menos três milhões de hectares foram afetados pela tragédia que se abateu no estado. Estima-se que sejam necessárias décadas para que eles possam ser recuperados. Foram regiões assoladas por 30 dias em um espaço muito curto por chuvas de 450 mm, 500 mm e até 700 mm, o que provocou uma alteração significativa no solo, particularmente nas características químicas, segundo os técnicos.
Estudo feito por pesquisadores da UFRGS e membros da Associação de Conservação de Solo e Água estima prejuízo de R$ 6 bilhões nas áreas devastadas. Os danos calculados se dão em solos e nutrientes. A enxurrada atingiu, principalmente, a camada que concentra o maior acúmulo de matéria orgânica, e, portanto, a parte mais fértil desses terrenos. A recuperação das áreas vai exigir correção, reconstituição do solo e adaptação dos modelos produtivos.
Segundo a Farsul (Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul), as estimativas indicam que a recuperação total do cenário agrícola deve levar uma década. O solo encharcado e saturado impede a infiltração de mais água devido ao excesso de umidade, o que tem levado a sérias consequências como erosões que arrastam nutrientes, matéria orgânica e até mesmo camadas superficiais do solo, tornando-os irreparavelmente danificados. Para formar só 1 cm de solo, são necessários de 300 a 400 anos, enquanto em um único evento climático, como as recentes enchentes, foram perdidos até 20 cm de solo em questão de horas.
A situação se mostra ainda mais alarmante pois a falta de oxigênio no solo saturado compromete a sobrevivência dos organismos responsáveis pela fertilidade e vitalidade, bem como o desenvolvimento adequado das plantas. Sem oxigênio, os processos biológicos essenciais para a saúde do solo são interrompidos, levando à morte desses organismos e à degradação ainda maior.
Uma força-tarefa de mais de 300 profissionais e técnicos da Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi), da Emater/RS-Ascar e do Departamento de Solos da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) está a campo para elaborar um raio X da condição das terras produtivas no estado e está levando uma luz no fim do túnel para os produtores que tiveram o solo arrasado pela calamidade no RS. O grupo, que percorre o Interior desde junho, agora, alerta sobre a complexidade do processo de recuperação das áreas estruturalmente modificada pelas águas.
É como um exame de sangue. Primeiro se faz a coleta do solo, depois a análise laboratorial, a interpretação deste exame e então a recomendação do que precisará ser reposto. Com base na mancha de inundação identificada pela Embrapa, foram mapeados os 120 municípios com a piores condições de solo para se aprofundarem os estudos, integrando a chamada emergência em rota, onde os trabalhos estão concentrados. São mais de 6 mil locais com dificuldades de solo identificados, os “no olho do furacão”, ou seja, onde as águas afetaram desde as lavouras até as casas dos produtores e todas as demais estruturas produtivas desses locais.
O primeiro resultado do esforço conjunto da academia e da extensão rural foi publicado na Nota Técnica nº 1. Sabe-se que o processo de recuperação dos solos será desafiador, pois será preciso recuperar a qualidade, não somente a parte química do solo, mas também a parte física e biológica e o maior desafio, segundo os pesquisadores, é trazer as terras afetadas de volta aos níveis de produção pré-existentes. Por isso, as tarefas de recuperação devem ser organizadas e planejadas, dada a peculiaridade de cada situação.
Os técnicos destacam a diversidade de situações que estão encontrando, muitas vezes, dentro da mesma propriedade. Por exemplo: nas análises preliminares, observa-se aumento no pH, o que uma tentativa de aplicação de calcário, sem embasamento de recomendação pela análise, incorreria em agravamento da situação. Um fato inédito trazido pela tragédia foi a formação de grandes áreas de sedimentação nas áreas planas. Com essa nova situação, os produtores estão buscando orientações sobre como agir, e os técnicos estão buscando na literatura internacional casos semelhantes para auxiliar nestas soluções. Existem áreas com 4 a 5 metros de depósito de areia. Em outras, houve remoção da camada mais fértil do solo, e há casos de elevada compactação.
A primeira ação foi realizar o diagnóstico da fertilidade do solo através da coleta de amostras em diferentes pontos das propriedades, pois pode ter havido deposição de areia (sedimento) em uns e perda de solo em outros. Com a amostragem, os técnicos começaram a conhecer a composição química desses solos alterados pelas enchentes e enxurradas. Os acadêmicos e os extensionistas já percorreram o Vale do Caí (Bom Princípio e Feliz) e o Vale do Taquari (Muçum e Roca Sales). O roteiro de análises seguiu para as regiões da Serra e das Terras Baixas.
Desafios e as tecnologias do Plano ABC+RS para a recuperação
Todo esse processo de recuperação dos solos do RS passa pela adoção das tecnologias do Plano ABC+RS. A política pública de adaptação às mudanças climáticas no setor agropecuário gaúcho preconiza a adoção de tecnologias que promovem maior resiliência para os sistemas de produção agropecuários. A principal delas é o Sistema Plantio Direto (SPD) que tem como as principais diretrizes, plantio em nível, revolvimento restrito a linha de plantio, cobertura permanente do solo com palha e plantas e a rotação de culturas.
Além disso se prevê a utilização de bioinsumos, a integração lavoura pecuária floresta, as florestas plantadas e as práticas de recuperação de pastagens degradadas. Segundo os técnicos, se o produtor conseguir realizar essas práticas, vai proporcionar a recuperação do carbono do solo que é o principal indicador de qualidade do solo. Nos casos em que a prática for insuficiente, a recomendação é utilizar os terraços. O sistema, que têm importante papel no controle do escoamento superficial, pode auxiliar na drenagem das chuvas intensas, além de auxiliar no armazenamento e na distribuição de água.
Reunir especialistas e formuladores de políticas públicas para desenvolver estratégias de manejo, que possam ajudar na recuperação e na prevenção de danos futuros é de suma importância. Dentre as medidas ainda sugeridas pelos especialistas, estão o cultivo de plantas de cobertura para proteger o solo durante os períodos de entressafra, a implementação de sistemas de controle de erosão mais eficazes e a promoção de práticas agrícolas sustentáveis que promovam a saúde do solo e a retenção de água. Todas essas tecnologias promovem a melhoria da qualidade do solo e todo esse trabalho será fundamental para marcar o recomeço dos produtores na atividade.
As Notas Técnicas
A produção de notas técnicas possibilitará o embasamento científico e a divulgação do conhecimento na área, visando nortear técnicos, produtores e entidades ligadas à produção agropecuária para o restabelecimento do solo agrícola e das bases dos sistemas produtivos afetados pelas enchentes e extremos climáticos no Rio Grande do Sul. As terras agrícolas precisam de reparos biológicos, físicos e químicos, para recuperação a fertilidade do solo antes de retornar à produção, aponta a Nota Técnica n° 1. Entre as práticas recomendadas estão:
- Remoção de detritos orgânicos;
- Remoção de depósito de sedimentos;
- Realização de amostragem e análise química do solo contemplando acidez e disponibilidade de macro e micronutrientes;
- Reparo de sulcos de erosão e voçorocas;
- Descompactação superficial do solo.
A indicação geral para os produtores é o adequado planejamento do uso das terras, já que estes fenômenos, como aponta a ciência, devem ser cada vez mais frequentes. Este planejamento deve considerar não somente a organização das propriedades agrícolas, mas também a integração com propriedades vizinhas e dentro das bacias hidrográficas (Nota Técnica n° 2), considerando os fluxos e disponibilidade de água para se adequar a períodos de excesso e falta de água. Os técnicos lembram que a água não respeita cercas, passa de uma propriedade para outra, por isso a necessidade de ações conjuntas.
As próximas Notas Técnicas deverão tratar de recuperação da fertilidade do solo, recuperação de áreas atingidas por voçoroca, tipo de mecanização a ser utilizada na recuperação de áreas e na remoção de sedimentos, entre outros assuntos. Ainda não há uma definição sobre o número de publicações, mas a ideia é ter entre quatro e seis, com textos curtos, de fácil leitura para produtores e extensionistas.
Bombas de sementes
Os gaúchos estão empenhados em ajudar no processo de reconstrução. No Dia de Proteção às Florestas (17 de julho), uma ação significativa foi realizada para contribuir com o reflorestamento do Vale do Taquari, por meio do projeto Semear. Cerca de 500 kg de sementes de espécies nativas e forrageiras foram lançadas por helicópteros sobre as encostas devastadas dos municípios de Santa Clara do Sul, Marquês de Souza e Pouso Novo. A iniciativa pretende acelerar a estabilização do solo e reduzir as chances de novos deslizamentos na região. Helicópteros do exército lançaram 5 milhões de sementes de 28 espécies da Mata Atlântica para ajudar na recuperação das áreas atingidas.
A ação busca mitigar os danos ambientais e prevenir futuros desastres, promovendo a regeneração da vegetação nativa. Além do lançamento de sementes, a ação contou com a participação ativa da comunidade local. Alunos de escolas públicas plantaram mudas de árvores no Parque Linear de Santa Clara do Sul, junto ao Arroio Saraquá. A ação de reflorestamento também contou com a colaboração de diversas instituições, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, o Exército Brasileiro, o Tribunal de Contas da União e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente).
Sanidade animal
O encontro na Expointer também trouxe outro assunto de grande relevância para o estado: a sanidade animal. Desde os avanços da abertura de novos mercados com o status de livre de aftosa sem vacinação até os desafios pós catástrofe, com a perda de plantéis e doenças. A produção animal responde por uma fatia significativa do PIB gaúcho e muitas granjas foram impactadas. A biosseguridade é um destaque e mostrou o potencial do setor em contornar problemas como o recente caso de Doença de Newcastle.