Ícone do site AGRONEGÓCIO

Seca ameaça a pesca do pirarucu na amazônia

Ribeirinhos em dificuldades na seca do Rio Solimões

De forma anormal terminou a temporada de pesca do pirarucu (Arapaima gigas), o maior peixe de escama de água doce do mundo e habitante da amazônia. Nunca os pescadores tiveram que estender o trabalho até meados de fevereiro e, ainda assim, retornarem com um carregamento abaixo do esperado. Pescadores passaram dois longos períodos nas águas tentando fisgar os mil peixes que tinham autorização para pescar, mas não conseguiram. Voltaram para casa, com menos peixes e com a preocupação do que virá no futuro.

A seca foi muito grande e quando o rio começou a encher foi de uma vez, contam os pescadores da Colônia de Pescadores de Alvarães, que ajuda a garantir renda para quase 200 famílias da região, no médio curso do rio Solimões. Faz 25 anos que a relação dos ribeirinhos com o gigante da amazônia precisou mudar. Por causa da captura desenfreada no passado, o pirarucu entrou em risco de extinção e teve a pesca proibida. Só depois de muita ciência aplicada e cooperação, o peixe voltou a ser visto nos lagos amazônicos. Apesar das dificuldades, os pescadores entenderam que era preciso preservar para que tivessem sempre peixe para trabalhar. O pirarucu voltou, mas agora eles enfrentam um novo problema.

Nos últimos dois anos, foi a água que faltou. A seca na amazônia, onde está a maior bacia hidrográfica do planeta, foi extrema e levou alguns rios aos menores níveis já registrados. A história de sucesso que salvou o pirarucu precisa de novo se adaptar a um novo cenário. Ana Cláudia Torres Gonçalves percorre as comunidades no entorno da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, em Tefé, a 600 quilômetros de Manaus, e tenta acudir os ribeirinhos. Filha de pescadores, ela se transformou numa das figuras mais respeitadas da região pelo seu conhecimento tradicional e técnico.

Ana Cláudia Torres Gonçalves, coordenadora do
Programa de Manejo Florestal Comunitário do Instituto Mamirauá

Segundo Gonçalves, todos os grupos de pescadores assessorados pelo Instituto Mamirauá estão tendo dificuldades para pescar. Ela coordena o Programa de Manejo Florestal Comunitário do Instituto Mamirauá e apoia 45 comunidades, três colônias e uma associação de pescadores. Durante a seca, o mato cresceu muito nas áreas normalmente alagadas e, no período autorizado da pesca, por causa da vegetação alta, os barcos não conseguem chegar em alguns pontos. O pirarucu se esconde nesses espaços. Antes, não se conseguia pescar porque faltava material. Hoje, existe o material, mas não se consegue chegar nos lugares. A seca forte e o alagamento rápido demais está atrapalhando muito.

A dificuldade se repete em outras regiões do estado. No curso do médio do rio Juruá, em Carauari, a seca também afetou profundamente a atividade dos pescadores. Segundo João Campos-Silva, presidente do Instituto Juruá e pesquisador associado do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), o impacto está mais na logística de pesca e no transporte do peixe. Com a água baixa, muita gente não conseguiu a pesca.

A grandiosidade do pirarucu, que pode chegar a três metros de comprimento, contribuiu para que ele se tornasse vulnerável. A espécie também tem baixa taxa de fecundidade, respiração aérea e um hábito sedentário que facilita sua captura. Já no fim de 1800, o pirarucu é listado como principal recurso pesqueiro da amazônia. A superexploração levou o peixe ao risco de extinção – o que chegou a acontecer de fato em algumas regiões. Em 1999, sua pesca foi proibida no estado do Amazonas e, em 2004, a regra passou a valer nacionalmente, segundo o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis).

A seca histórica no Rio Solimões reduziu drasticamente o nível
do Lago Tefé, que atingiu apenas 4,54 metros em outubro
Foto: Alessandro Falco/ICMBio

O cenário dramático desafiou cientistas e órgãos ambientais a experimentarem. Os primeiros testes de conservação aliada à pesca controlada surgiram com o Instituto Mamirauá, criado em 1999. O método científico foi desenvolvido com base no conhecimento tradicional: os pescadores contam os peixes adultos que sobem à superfície para respirar e, a partir do número obtido, planejam o quanto poderão fisgar. Todo esse processo é parte do chamado manejo, ou gerenciamento da pesca.

Depois dos resultados promissores documentados por Mamirauá, o Ibama começou a liberar o manejo comunitário em 2005. A captura permitida é de no máximo 30% dos peixes adultos do total contabilizado nos lagos naturais onde os pescadores atuam. O peixe precisa ter mais de 1,5 metro. Com esse tamanho, garante-se que pelo menos 50% dos peixes que estão ali já se reproduziram pelo menos uma vez. Para 2024, a cota de captura autorizada pelo órgão foi de 103 mil peixes, com base na contagem do pirarucu feita no ano anterior. Mas o total retirado dos lagos deve ficar bem abaixo desse patamar. Faz dois anos que a cota autorizada não é atingida. No ano passado, a eficiência da pesca foi de 70%, nesse ano, que teve uma seca mais extrema ainda, estima-se não chegar em 50%, lembrando que o manejo foi estendido até 10 de fevereiro por causa dessa dificuldade.

Desde que foi estabelecido, esse processo da preservação dos lagos e da pesca controlada costumava acontecer no período sem chuvas na amazônia, de setembro a novembro. Mas nos últimos dois anos, o calendário precisou se ajustar. O manejo comunitário também representou um “grito de liberdade” para os pescadores que, até então, se viam obrigados a vender o pescado para a figura do patrão, que pagava o quanto queria e mantinha uma relação de trabalho análoga à escravidão. Depois que o manejo começou, os pescadores conseguem negociar, vender para os comerciantes que pagam melhor e negociam a produção antes da pesca, o que mostra a importância do método na renda das comunidades.

Pesca do pirarucu – Foto: Bruno Kelly

Há mais de uma década, Ana Cláudia Gonçalves diz notar as mudanças nos padrões do clima na região. Os pescadores não conseguem mais entender os sinais vindo da natureza que antecipam uma cheia forte, ou uma seca brava, diz Gonçalves sobre o olhar atento e saber tradicional dos ribeirinhos. Nos dois últimos anos, período em que a amazônia enfrentou as duas piores secas consecutivas, o problema se escancarou. Vive-se um novo desafio agora. Tinha-se um cenário praticamente muito cômodo do manejo, com pesca acontecendo sempre no mesmo período, tudo tranquilo. Agora mudou.

As conversas sobre um ajuste permanente no calendário anual já começaram. Há reuniões programadas com pescadores para discutir as adaptações no manejo e no prazo das autorizações de pesca emitidas pelo Ibama, assim como melhorias na logística e nas embarcações. As comunidades estão ligadas nas mudanças climáticas. O processo do pulso de inundação e de seca do rio modificou, ele está secando um mês antes e está voltando a encher um mês e meio depois. Está tendo mais flutuação.

O efeito de todos esses fenômenos sobre o pirarucu ainda é desconhecido. A biologia da espécie é adaptada a lagos rasos com pouco oxigênio. No entanto, ainda não se tem estudos conclusivos para saber se a seca extrema tem prejudicado a reprodução e o crescimento do peixe. Ainda são poucos dados disponíveis para avaliação. Um estudo em andamento focado na desova vai ajudar a trazer algumas respostas. Depois de concluir o monitoramento da pesca, que começou em 2024 mas que está se estendendo para 2025, os pesquisadores terão a possibilidade de avaliar melhor os impactos dessa seca sobre a estrutura da população de peixes.

Fonte: Nádia Pontes/Deutsche Welle

Leia também:

Sair da versão mobile