De 11 a 14 de maio, cerca de 320 mil pessoas passaram pelo Parque da Água Branca, região central de São Paulo (SP) para conferir mais de 1730 itens diferentes comercializados
O evento reuniu 1700 produtores agroecológicos de todo o país, organizados em 191 cooperativas e associações de agricultores familiares, que levaram cerca de 560 toneladas de produtos, das quais 38 toneladas foram distribuídas para 24 entidades da cidade e utilizadas em ações de solidariedade, que atendem às famílias mais carentes da região.
O visitante pode experimentar um mix de cultura, música, alimento saudável e fraternidade, numa grande mostra da luta pela democratização da terra e pela soberania alimentar.
Demonstração de força e solidariedade
A Feira cumpriu o objetivo de ser uma grande festa da cultura popular e da resistência camponesa, alcançando todos os objetivos inicialmente programados, mostrando a diversidade da produção agrícola dos assentamentos da reforma agrária espalhados pelo país.
Além da produção agrícola, o evento foi um grande show de arte e cultura. Uma amostra de diferentes manifestações com muito samba, jongo, hip hop, apresentações teatrais, oficinas, palestras, literatura, moda de viola, das cinco regiões do país. Shows, apresentações, intervenções, tudo com muito alimento saudável e comida de verdade.
O evento foi uma oportunidade de conhecer a diversidade e a qualidade dos alimentos que vêm dos assentamentos e acampamentos da reforma agrária, livres de agrotóxicos e transgênicos. Foram frutas, verduras, legumes, grãos, mel, queijos, doces, geleias, cachaças, vinhos e muito, muito mais.
O gosto do Brasil à disposição do público
A Culinária da Terra, espaço dedicado à gastronomia regional, os cheiros e sabores que dão o tempero da feira também veio com tudo, chegando a servir 80 mil refeições. Foram 95 pratos de 30 cozinhas diferentes, com a cultura de cada cantinho do país.
O evento demonstrou a importância da reforma agrária como alternativa para o combate à fome.
Com programação cultural gratuita contou com shows de artista consagrados, como Zeca Baleiro e Alessandra Leão, Yago Oproprio e Jorge Aragão, Gaby Amarantos e Johnny Hooker, Camisa Verde e Branco, e um fechamento especial com o Show Terraça, pensado especialmente para a feira, além de grupos populares, intervenções, e muita música. Ao todo, 412 artistas passaram pelo evento, além de diversos influenciadores, comunicadores e apoiadores do MST do Brasil e de outros países.
Os espaços dedicados à educação contaram com 15 atividades de formação, entre seminários e oficinas, e tiveram a participação de mais de 2 mil pessoas. Outro destaque foram os lançamentos de livros sobre assuntos ligados à agroecologia, feminismo, luta antirracista, educação do campo, Reforma Agrária Popular e conjuntura nacional. A feira é um espaço de diálogo entre o campo e a cidade, de denúncia das injustiças sociais e ambientais e de celebração das lutas e conquistas do povo brasileiro.
Ação ambiental também faz parte da reforma agrária
Os visitantes também puderam conhecer a prática de viveiros agroecológicos implantada nos assentamentos e acampamentos do movimento, uma das ações concretas do Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis, com o desafio de plantar 100 milhões de árvores no país.
Mais de 20 mil mudas e cerca de 880 Kg de sementes foram doadas no evento. A réplica de um viveiro agroecológico foi instalada na feira nacional, com a presença de coletores de sementes e produtores de mudas de diversos estados onde são desenvolvidas ações de reflorestamento.
Não basta apenas acabar com o desmatamento, é preciso recuperar várias dessas áreas, por inúmeros motivos, um deles é porque as florestas são meios extremamente eficientes de captar carbono, ou seja, aliviar muito o problema das mudanças climáticas.
O Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis do MST é reconhecido como tecnologia para o desenvolvimento produtivo, a recuperação ambiental e geração de renda.
O plantio de árvores também tem uma função econômica muito grande, pois pode gerar postos de trabalho e gerar renda para a população em uma ação por um bem coletivo. O programa está alinhado com a luta global pela preservação climática e do meio ambiente.
Sinergia política
A Feira também foi um momento de diálogos e articulações institucionais entre governos municipais, estaduais e federal, além de ministros e de parlamentares para cobrar a estruturação de políticas públicas voltadas para os assentamentos das famílias acampadas no país como estratégia de combate à fome.
Segundo os organizadores, “é preciso construir uma sinergia dos movimentos sociais, da sociedade civil brasileira e do governo para que se avance com um verdadeiro programa nacional de Reforma Agrária. Um programa nacional que vise desenvolver os assentamentos existentes, as mais de 500 mil famílias assentadas pelo país, já organizadas na base do MST, e assentar as mais de 80 mil famílias acampadas”.
Outra demanda apresentada pelo MST concentrou-se na ampliação de políticas estruturantes para a produção de alimentos saudáveis e a agroindustrialização dos assentamentos, além de incentivos na área da recuperação ambiental.
Segundo os membros do movimento, é preciso ampliar a produção de alimentos na sua diversidade, mas também num programa que incentive a agricultura familiar no processo de agroindustrialização para Reforma Agrária, criando possibilidade de recuperar o passivo ambiental.
Os organizadores destacaram a importância do Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis para recuperar o meio ambiente, juntamente com a produção de alimentos livres de veneno, exploração e violências.
Participação estrangeira – fortalecendo um modelo alternativo de cultivo no mundo
Pela primeira vez, o evento recebeu delegações internacionais oriundas do México, Colômbia, Argentina, Venezuela, Bolívia, Sri Lanka, Nepal, Indonésia, Palestina, Congo Brazzaville e Noruega. Em suas bagagens, os participantes estrangeiros trouxeram itens desenvolvidos a partir de processos de cultivo agroecológicos, isto é, que adotam técnicas de manejo que mitigam os impactos no ecossistema.
A barraca internacional carregava “bandeiras em comum”, como a “construção da agroecologia, soberania alimentar e a comercialização” para fomentar a “economia camponesa”, uma alternativa ao modelo dominante de produção em monoculturas.
As delegações estrangeiras venderam seus produtos e participaram de painéis de discussão. Foi possível trazer um pouco da luta dos camponeses de todo o mundo a partir da sua produção. O visitante pode encontrar o azeite de Mendonza, região famosa pela produção de vinho na Argentina, passando pelo café colombiano, a quinoa boliviana, o mole mexicano – mistura de especiarias – até o curry de pimenta do Sri Lanka.
A importância da produção sustentável
Rafael Arantes, pesquisador em Nutrição em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) afirma que apesar dos últimos recuos em importantes indicadores, o Brasil não deixou de ser uma referência para o mundo no que diz respeito a políticas públicas. “Já ensinamos como lidar de maneira significativa e contundente no combate à fome”, alerta.
Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome produzido pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Em 2018, o país voltou ao ranking. Arantes explica que o Brasil melhorou os seus índices nas primeiras duas décadas deste século por conta de políticas públicas combinadas e o avanço na compreensão de que o acesso à alimentação é também um direito humano.
Sobre os últimos retrocessos, argumenta que “houve uma desestruturação [dessas políticas] nos últimos anos. Tudo isso foi agravado pela pandemia e pelas políticas de austeridade, que tiveram impacto direto na vida das pessoas.”
Rafael Arantes ainda afirma que a produção de alimentos por parte do MST é algo relevante, não só pela produção de arroz agroecológico, pois isso mostra o “potencial dos movimentos em geral.”
Ele sustenta que os “movimentos sempre estiveram se articulando e produzindo, independente de governos”, mas agora o “Brasil pode se colocar de uma forma mais robusta no mundo em relação à produção de alimentos sem o uso de agrotóxicos. Precisamos reverter a lógica dos incentivos, precisamos favorecer os agricultores que estão nessa produção de alimentos e o inverso também: motivar outros a fazerem a transição para esse modelo”. E finaliza: “a expectativa é que com o retorno do investimento do Brasil em políticas públicas para a alimentação faça que o país volte a protagonizar essa agenda, nos próximos anos, no mundo”.
Artistas e políticos apoiam a reforma agrária
O movimento já enfrentou muita resistência da sociedade conservadora, balas e jagunços, mas continua firme no seu propósito, a luta pela reforma agrária e pela transformação social. Mais um obstáculo se coloca à frente do MST, uma CPI.
Segundo a coordenação, que venha a CPI do MST, pois será enfrentada de frente, como sempre fizeram. Ironizam a CPI que vai achar coisas interessantes, como suco de uva que não tem trabalho escravo, produtos que não tem agrotóxicos, nem soja transgênica e nem leva milhares de brasileiros à extrema-pobreza e à miséria.
O governo federal deve anunciar ainda neste mês um novo programa de reforma agrária. “A reforma agrária vai voltar, para o Brasil distribuir terras, recuperar terras improdutivas”, afirmou o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, durante o evento. Além das terras, o ministro prometeu crédito e assistência técnica aos camponeses sem-terra.
O presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Edegar Pretto, destacou a luta do MST no combate à fome durante a pandemia. “Foram 8 mil toneladas de alimentos que o MST entregou nas periferias das grandes cidades do país. E mais 2 milhões de marmitas feitas pelo MST, e outras 10 mil cestas de alimentos”. Ele citou a liberação de R$ 500 milhões para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), e prometeu que a Conab vai ser “o maior cliente dos assentados da reforma agrária”.
Para Edgar Barbosa, da Federação Rural Luta Arraigada da Argentina, o MST é um “farol” que inspira a luta camponesa em toda a América Latina. “Hoje, mais do que nunca, necessitamos fortalecer os laços de irmandade entre as organizações e pensar a função social da terra. Na Argentina, não temos nenhum marco legal que permita o acesso à terra aos campesinos e pequenos produtores. Hoje, esta é a nossa luta, e também é a luta pela segurança e soberania alimentar”.
O jornalista Chico Pinheiro afirmou que se a Lei fosse respeitada no Brasil, a reforma agrária já deveria ter sido feita, e o MST – que tem quase quatro décadas de luta – não teria mais razões para existir. Por outro lado, disse que se o MST tivesse vindo “antes, bem antes”, talvez as cidades brasileiras não tivessem hoje milhões de brasileiros vivendo em condição de miséria nas favelas e periferias. “Esse povo deveria estar no campo, plantando, colhendo, partilhando e sendo feliz”.
O ator José de Abreu, recitou A Defesa Do Poeta, da portuguesa Natália Correia, que no seu último verso diz que “a poesia é para comer”. “Não queremos só comida. A gente quer comida, diversão e arte”, afirmou o ator. Ele também rebateu a pecha de “invasores” que recai sobre o MST. “Invasores são aqueles que invadem as terras dos povos originários. São aqueles que vão detonar a nossa natureza, que matam nossos indígenas. O que o MST faz é ocupar terra improdutiva. (…) Vamos mostrar para a CPI quem é invasor e quem ocupa legalmente uma terra improdutiva”.
Solidariedade
Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, no último dia do evento, recebeu de forma simbólica junto com integrantes de movimentos sociais a doação de 25 toneladas de alimentos saudáveis durante a 4ª Feira Nacional da Reforma Agrária para 20 entidades sociais da grande São Paulo. “Nesse momento a palavra é de gratidão e de encorajamento: a nossa luta vale a pena. Não podemos desistir. [Devemos] ocupar, produzir, resistir e enfrentar”, disse o padre.
Na sequência lembrou de todas as dificuldades que o povo de rua enfrenta. “Todos que andam hoje pelo centro de São Paulo estão vendo a quantidade de pessoas que estão nas ruas. Quantos irmãos e irmãs estão nas ruas, debaixo de terrível repressão e violência das Guardas Civis metropolitanas e das polícias militares, isso se repete pelo Brasil todo”, criticou.
Ao falar sobre a doação, ressaltou que o Brasil produz comida suficiente para que ninguém passe fome: “O povo sabe que tem comida para todo mundo. O Brasil produz, o MST produz e produz alimento de qualidade para os mais pobres, para o nosso o povo”.
Ao concluir o seu agradecimento, Júlio Lancellotti disse que a “feira do MST é um exemplo para o Brasil todo” e que prepara nos próximos dias, junto ao movimento, um bandejão solidário e popular para atender os necessitados na região da Mooca, onde mantém sua ação solidária.
No ato, o fundador e membro da direção nacional do MST, João Pedro Stedile, lembrou da obra de Josué de Castro, Geografia da Fome, que constatou nos anos 40 que a fome “não é um problema da natureza, é um problema dos homens. A fome não é causada pela seca nem por intempéries climáticas. A fome é resultado das relações sociais de produção na sociedade”, explicou.
Para completar, falou da indignação que é para todos ter pessoas nas ruas e sem se alimentar: “É uma vergonha, não para o governo, não para as prefeituras. É uma vergonha para o povo brasileiro, um país tão rico. Tem gente que ainda mora na rua e não podemos admitir. Por isso que o MST é solidário. Nós entregamos milhares de marmitas durante a pandemia para salvar este povo”, concluiu Stedile.
Menos ódio e mais compreensão
Num contexto de retomada da democracia, os desafios para avançar na construção da Reforma Agrária Popular são diversos, mas um deles é urgente: a resolução dos conflitos no campo, que são uma realidade em 80.165.951 hectares de terra de todo o território nacional, de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
O aumento no número de conflitos tem relação direta com o crescimento nos crimes de ódio contra trabalhadores e trabalhadoras rurais organizados. O ódio agora não é só direcionado contra o trabalhador, mas contra o trabalhador organizado. O trabalhador rural organizado passou a ser uma peça muito incômoda, que atrapalha os segmentos conservadores organizados que faz de tudo para criminalizar os movimentos populares a partir de medidas no Congresso, no Judiciário e Assembleias Legislativas.
O evento foi uma oportunidade para os consumidores urbanos conhecerem de perto a realidade dos trabalhadores rurais e apoiarem a sua luta por terra, trabalho e dignidade. Ao valorizar a agricultura familiar e camponesa, responsável por produzir a maior parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, a feira é espaço de resistência e de construção de alternativas ao modelo agrícola convencional, baseado no latifúndio, no monocultivo e no uso intensivo de agrotóxicos
Para os coordenadores do movimento, a feira é uma “demonstração simbólica” do resultado da reforma agrária popular, demonstrando que só é possível diversidade de comida boa e saudável, porque existiu um processo anterior de organização e luta pela terra. Também serve para prestar contas à sociedade das ocupações que o movimento realiza.
A reforma agrária no sistema capitalista é o caminho para construir uma sociedade melhor, mais segura e fraterna. É importante compreender que a reforma agrária extrapola os limites do campo. Enquanto existir terra sem gente, e gente sem-terra, o movimento seguirá construindo a reforma agrária popular, produzindo alimento saudável e uma nova sociabilidade. Não se pode falar em democracia se não for priorizada a reforma agrária no país.
A reforma agrária popular busca estabelecer novas relações com o meio ambiente, não expulsa as pessoas da terra, não transforma os bens comuns em mercadoria e nem contamina o solo, o ar e as águas, com o uso desmedido de agrotóxicos.